Resumo do que vai encontrar no texto a seguir
Procura-se com o presente trabalho evidenciar a influência do crescimento populacional na reorganização do território: delimitação de fronteiras, administrativa civil, e eclesiástica. Como conclusão pretende-se fazer a ponte entre a reorganização eclesiástica e o estado de fanatismo religioso que o monarca assumiu na segunda metade do seu reinado.
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O objecto de estudo do presente trabalho é o primeiro volume da obra, Gente e Espaços: em torno da população portuguesa na primeira metade do século XVI, composto pelos livros 1.º, 2.º e 3.º, da autoria do Professor Doutor João José Alves Dias, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, em 1996. Através desta obra pretende-se fazer uma reflexão, isto é o objectivo, das consequências provocadas pelo aumento populacional que se evidenciou no final do século XV e inícios do século XVI [1], concluindo como as influências que a reforma eclesiástica produziu em D. João III, quando sobre este psicologicamente pesaram os efeitos da debilidade demográfica sentida pela corte.
O alicerce desta obra de Alves Dias é o numeramento de 1527-32 [2], mandado realizar por D. João III, com base numa divisão administrativa organizada em seis comarcas (sendo que uma era o reino do Algarve), e que para cada uma se elaborou um arrolamento. É uma obra de carácter histórico e não de génese demográfica, administrativa ou institucional [3].
Em relação ao estado da arte, sobre este documento já foram elaborados imensos trabalhos/estudos, mas cumpre-me destacar o trabalho de um grande Geógrafo, Professor Doutor Orlando Ribeiro (1989), onde se conclui que apesar de um povoamento disperso era na província Entre Douro e Minho que se verificava a maior densidade populacional, com 55099 fogos, o que representava 19,6% da população portuguesa à época. O trabalho de Orlando Ribeiro não se esgota no numeramento e também analisa outras fontes posteriores, nomeadamente os levantamentos de guerra (1580-1639), onde conclui que o crescimento populacional iniciado no começo do século XVI estagnou entre meados do século XVI e meados do século XVII [4].
Não poderia encarar este trabalho limitando-me a uma abordagem entrincheirada, imediata e imparcial sobre o tema que me propus delinear, sem referir, muito rapidamente, os contextos político e socioeconómico, nacionais e internacionais, em que está inserido e como são marcantes no que concerne à vida deste rei português, do nascimento à sua morte.
D. João III, cognominado O Piedoso ou O Pio pela sua devoção religiosa, era filho de D. Manuel e da sua segunda esposa, D. Maria, filha dos Reis Católicos, nasceu em Lisboa em 1502 e faleceu em 1557. Para saudar o seu nascimento, Gil Vicente representou na câmara da rainha o seu Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro, uma das mais significativas obras do teatro português. Subiu ao trono em 1525 e casou com D. Catarina de Áustria. No seu reinado, de mais de três décadas, presidiu aos destinos de um Portugal no apogeu da sua expansão ultramarina por três continentes mas que preludiava já o inicio da sua decadência, que se sentirá no final do seu reinado.
D. João III consolidou as posições portuguesas na Índia, assegurou o monopólio das especiarias ao resgatar, em consequência da viagem de Fernão de Magalhães, as Molucas por 350.000 ducados de ouro e estabeleceu contactos com a China e o Japão [5]. Preferiu abandonar as praças marroquinas de Safim, Azamor, Alcácer Ceguer e Arzila para que Portugal pudesse levar ao máximo o comércio da Índia e iniciar o aproveitamento das potencialidades do Brasil, e expandiu o comércio português, alargando os contactos directos às regiões renanas e aos países do Báltico. Convêm referir que no reinado de D. João III, o comércio oriental era feito sob duas metodologias: comércio inter-asiático e intra-asiático [6]. É considerado um rei estratega pela forma positiva como defendeu o Império Português da ameaça francesa e espanhola, mesmo com as divergências que existiam entre facções na sua corte, que podem ter determinado algumas alterações à política ultramarina.
Introduziu a Companhia de Jesus, à qual confiou a evangelização do Oriente (São Francisco Xavier), do Brasil (Manuel da Nóbrega) e da África (Etiópia) e a quem entregou o Colégio das Artes de Coimbra. Apesar de esta ser uma atitude claramente repressiva, no inicio do reinado apresentou uma grande abertura ao exterior e até de alguma flexibilidade, situação que se alterou no final do seu reinado com a Inquisição e com Companhia de Jesus, e motivo pelo qual foi denegrida a sua imagem, passando a ser conhecido pelo “rei fanático”, conforme citação: “o longo reinado de D. João III (1521-57) pode ser dividido em dois grandes períodos (…): o príncipe tolerante, aberto às correntes internacionais do pensamento, louvado por humanistas e sempre disposto a acolhê-los, o verdadeiro Mecenas, deu lugar a um governante fanático e curto de vista, controlado pela Companhia de Jesus e os defensores de um estrita política de Contra-Reforma, mandando prender e condenar aqueles mesmos que antes convidara, mesquinhamente reduzindo despesas e subsídios, fechando escolas e geralmente isolando-se, e ao País, de influencias externas.” [7]
As principais políticas que se verificam ao longo do seu reinado são: políticas demográficas (consequência da debilidade demográfica), politicas de casamentos [8], e politicas de necessidade de afirmação do corpo do Rei, através da sua presença.
No campo cultural, nesta primeira parte do reinado, promoveu a cultura através da concessão de bolsas de estudo no estrangeiro, da fundação do Colégio das Artes, da instalação e revitalização da Universidade de Coimbra, e do auxílio à fundação de colégios pelos Jesuítas, ao ponto de granjear internacionalmente estima e prestígio [9].
A fase final do seu reinado ficou marcada pelo início das dificuldades económico-financeiras, e por uma influência progressivamente acentuada do espírito da Contra-Reforma, emanada do Concilio de Trento, o que se traduz nomeadamente na luta pelo alargamento de competências da Inquisição e na Institucionalização da censura às obras impressas [10].
Apesar de o monarca ter na segunda fase do seu mandato uma prestação menos positiva face ao que era expectável, o que lhe valeu uma imagem pejorativa, durante a primeira fase do seu reinado administrou com relativo sucesso Portugal e os territórios ultramarinos, e procedeu a uma reorganização administrativa civil, fiscal, eclesiástica e de delimitação de fronteiras [11], como resposta ao crescente aumento populacional, ainda que a reorganização não tenha sido pacífica.
Pelas palavras de Alves Dias, após a realização do numeramento, “o monarca estava habilitado a efectuar as reformas administrativas, judiciais e fiscais que um estado moderno impunha”, o que se verificou subsequentemente e administrativamente ao término do numeramento [12].
A densidade populacional sempre foi uma variável que serviu para classificar os povoados em lugares, vilas ou cidades, pelo que era uma ambição natural ascender nesta escala hierárquica, nas palavras de Alves Dias, queriam uma “nobilitação”. Ainda assim, era mais fácil passar de lugar a vila, do que de vila a cidade [13], o que gerava muitas vezes conflitos principalmente nos estratos mais baixos da população, muitas vezes ocultados por conflitos que suscitavam mais interesse, os produzidos no seio da corte.
Segundo Alves Dias, a constituição da fronteira nacional e a definição e implementação da organização administrativa concluída no século XIV, só sofreu alterações significativas com o “advento do Estado Moderno”, isto é, com a criação de novas comarcas no reinado de D. João III, fruto da dilatação da estrutura demográfica [14].
A nível local também se faz sentir a pressão demográfica, resultando na criação de novos concelhos, apesar de muito contestados, e no final do século XV e na primeira metade do século XVI, muitos lugares forma elevados a vila, e posteriormente elevados a concelhos [15]. Entre 1495 e 1545 foram criados 16 novas vilas que resultaram em 15 novos municípios, sendo que anteriormente, em igual período de tempo, entre 1445 e 1495, só tinham sido criadas 4 novas vilas, que resultaram em 4 novos concelhos [16]. Neste processo foram as regiões da Estremadura e do Alentejo que mais beneficiaram, cada uma com 6 novos concelhos cada [17]. O crescimento foi de tal forma denso que na impossibilidade de criar várias cidades em simultâneo, a coroa criou o título de “vila notável”, onde atribuía às vilas que já reuniam condições para ascender (mas não o poderiam fazer), prorrogativas idênticas às das cidades [18].
A expressão, “havia gente para tudo…Todo o país crescia” [19], evidencia claramente essa elevada densidade humana, que forçou novas exigências administrativas resultantes de uma cada vez mais complexa administração do espaço, que exigiu o aumento do número de funcionários públicos, bem como a divisão administrativa civil, isto é, uma maior divisão do espaço a administrar através dilatação da estrutura comarcal; entre 1532 e 1536 foram criadas 15 novas comarcas e somente extinta uma já existente, a de Alenquer [20].
Em simultâneo ao processo da reforma administrativa civil, trabalhou na solidificação da delimitação da fronteira (ainda registava problemas pontuais, do género, apropriação de pequenas parcelas de terras), e nesse sentido preservou os castelos que permitiam o controlo da fronteira, definiu locais para transaccionar produtos com a Espanha, e dotou sempre que possível esses espaços com funcionários alfandegários, e ainda mandou “patrulhar” os territórios de fronteira, esforço que se traduziu na definição concreta e objectiva da fronteira portuguesa, na década de 40 do século XVI, conseguindo estabilizar “a linha da raia” após longas negociações com Espanha [21]. Mais uma vez se verifica a necessidade de proteger o espaço, o que pode ser entendido como uma forma de proteger o crescente número de cidadãos que residiam em áreas raianas, e que cada vez mais precisavam de terrenos para agricultar, isto é, mais uma vez os efeitos da densidade demográfica se revêem na actuação do monarca.
Depois de concluída a reforma administrativa civil, e a delimitação de fronteiras, D. João III iniciou a reforma eclesiástica, ainda no início da década de 40 do século XVI, culminado este processo na criação de novas dioceses [22]. Porém, esta reorganização mostrou-se mais complicada que as anteriores, foi mais lenta, teve muita contestação porque o prelado não aceitava a redução do território que administrava e consequentemente das receitas que recebia, obrigando o monarca a utilizar algumas artimanhas para atingir os objectivos [23].
D. João III com grande perspicácia aproveitou o facto de se constituírem no ano de 1543 duas sedes vacantes [24], a “21 de Julho, a de Coimbra, por morte de D. Jorge de Almeida e, a 10 de Novembro, a de Braga, por morte do arcebispo infante D. Duarte” [25], adiou a nomeação de novos bispos e começou a pensar na fragmentação do território afecto a essas dioceses, sem que para isso tivesse consultado o Papa. Após ter delineado a nova estrutura administrativa eclesiástica a aplicar ao território destas dioceses, quatro meses depois de ter começado o plano, morreu o seu filho [26]. Neste período agravou-se o flagelo demográfico que se vinha a abater sobre a corte, que grosso modo tem inicio quando começaram as reformas administrativa civil, intensificando-se no inicio da reforma religiosa.
Posteriormente o monarca propôs ao Papa III uma comissão para estudar a criação de novos bispados, que foi aprovada e constituída, e viria a realizar um trabalho notável no âmbito da reestruturação eclesiástica a nível nacional, muito completo, elaborado com base no numeramento, e assente em três variáveis: “as rendas eclesiásticas, o número de fogos e a distância a que cada unidade administrativa ficava da nova sede proposta” [27].
Este plano de reforma definido pela comissão sofreu várias contestações ao longo da sua implementação, quase sempre em reacção à redução das rendas a receber pelas dioceses, inclusive a 16 de Fevereiro de 1545 D. João III teve de suspender o processo, com receio de uma possível não aprovação em Roma, já que a reforma fixava para diocese de Braga uma renda de 1.094$181, por exemplo, “inferior à dos simples bispados de Freixo e de Miranda” [28]. Aqui se verifica mais uma vez a actuação do monarca para tentar alterar o desfecho dos acontecimentos, e caminhando no sentido oposto à generalidade do prelado português.
Em 1549, em Roma, o representante do monarca português, Dr. Baltasar de Faria, dava conta de uma serie de dificuldades para aprovar a reforma, conforme citação: “muytas outras dificuldades se põem as quais spero de satisfazer e Vossa Alteza nam se spamte porque estes senhores, como vem que os príncipes por via de reformaçam lhes streitam as medidas trabalham de lhes respomder polas consoantes e vam lhes aos dados em quamto podem. Se Vossa Alteza soubesse os rigores que usam nas cousas do emperador e rey de França pera os excluir de meterem as maõs nas cousas de igreja spantar s ia” [29].As dificuldades surgiam de todos os quadrantes o que é representativo do poder da igreja e da sua influência em toda a cristandade. E contra este poder, não no sentido de antagonismo, mas no sentido de tentar reordenar o território português, sempre esteve D. João III, comandando um processo doloroso de reforma religiosa, suportando ao mesmo tempo o facto “de todos os nove filhos morrerem antes de atingir os dezanove anos de idade, juntamente com cinco irmãos e irmãs, e a maioria de todos nos finais da década de 1530 e nos começos da de 1540” [30].
Para agudizar a conjuntura já por si desmotivadora, intensificaram-se as pressões externas, principalmente por parte dos Reis Católicos e depois de Carlos V (pressões que já existiam desde o século XIV), questionando a passividade em relação aos “Cristãos-novos e outros fugitivos da Inquisição espanhola”, acusações que ainda mais afastavam D. João III do seu dever religioso como soberano, altura em que já tinha perdido muitos familiares, e em reacção o monarca abriu as portas à Inquisição em Portugal, podendo dizer-se, ainda que seja uma leitura abusiva, que também abriu a mente e entregou o alma à oração, tendo mesmo vestido preto nos últimos cinco anos em que foi rei [31].
Para concluir, porque as limitações de espaço assim o impõem, verificou-se em D. João III um conjunto de atitudes e comportamentos característicos de uma posição neutral ou liberal em relação às opções religiosas no inicio do seu reinado, o que foi profundamente antagónico face aos interesses do prelado e dos vizinhos espanhóis. Em sequência das sucessivas mortes em seu redor, de familiares que lhe estavam próximas, e sentindo-se responsável por essas mortes, resolveu culpar-se justificando estas mortes com as suas atitudes menos positivas em relação à Igreja, vivendo carregando esse sentimento de culpa, possivelmente considerando que se tratava de uma espécie de maldição divina resultante dos seus erros como rei, e daí que tenha abandonando os destinos do país, entregando-os à sua mulher, para se dedicar somente a Deus e à oração, vestindo-se mesmo de preto nos últimos anos de vida, sinal de uma morte lenta da sua alma. Tal como o diz A. H. de Oliveira Marques, que relaciona a debilidade demográfica ao “fanatismo religioso”, esse fanatismo podia ser o “único consolo de absolvição da culpa de tolerância para com os hereges, os Judeus e outros católicos tíbios” [32].
O alicerce desta obra de Alves Dias é o numeramento de 1527-32 [2], mandado realizar por D. João III, com base numa divisão administrativa organizada em seis comarcas (sendo que uma era o reino do Algarve), e que para cada uma se elaborou um arrolamento. É uma obra de carácter histórico e não de génese demográfica, administrativa ou institucional [3].
Em relação ao estado da arte, sobre este documento já foram elaborados imensos trabalhos/estudos, mas cumpre-me destacar o trabalho de um grande Geógrafo, Professor Doutor Orlando Ribeiro (1989), onde se conclui que apesar de um povoamento disperso era na província Entre Douro e Minho que se verificava a maior densidade populacional, com 55099 fogos, o que representava 19,6% da população portuguesa à época. O trabalho de Orlando Ribeiro não se esgota no numeramento e também analisa outras fontes posteriores, nomeadamente os levantamentos de guerra (1580-1639), onde conclui que o crescimento populacional iniciado no começo do século XVI estagnou entre meados do século XVI e meados do século XVII [4].
Não poderia encarar este trabalho limitando-me a uma abordagem entrincheirada, imediata e imparcial sobre o tema que me propus delinear, sem referir, muito rapidamente, os contextos político e socioeconómico, nacionais e internacionais, em que está inserido e como são marcantes no que concerne à vida deste rei português, do nascimento à sua morte.
D. João III, cognominado O Piedoso ou O Pio pela sua devoção religiosa, era filho de D. Manuel e da sua segunda esposa, D. Maria, filha dos Reis Católicos, nasceu em Lisboa em 1502 e faleceu em 1557. Para saudar o seu nascimento, Gil Vicente representou na câmara da rainha o seu Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro, uma das mais significativas obras do teatro português. Subiu ao trono em 1525 e casou com D. Catarina de Áustria. No seu reinado, de mais de três décadas, presidiu aos destinos de um Portugal no apogeu da sua expansão ultramarina por três continentes mas que preludiava já o inicio da sua decadência, que se sentirá no final do seu reinado.
D. João III consolidou as posições portuguesas na Índia, assegurou o monopólio das especiarias ao resgatar, em consequência da viagem de Fernão de Magalhães, as Molucas por 350.000 ducados de ouro e estabeleceu contactos com a China e o Japão [5]. Preferiu abandonar as praças marroquinas de Safim, Azamor, Alcácer Ceguer e Arzila para que Portugal pudesse levar ao máximo o comércio da Índia e iniciar o aproveitamento das potencialidades do Brasil, e expandiu o comércio português, alargando os contactos directos às regiões renanas e aos países do Báltico. Convêm referir que no reinado de D. João III, o comércio oriental era feito sob duas metodologias: comércio inter-asiático e intra-asiático [6]. É considerado um rei estratega pela forma positiva como defendeu o Império Português da ameaça francesa e espanhola, mesmo com as divergências que existiam entre facções na sua corte, que podem ter determinado algumas alterações à política ultramarina.
Introduziu a Companhia de Jesus, à qual confiou a evangelização do Oriente (São Francisco Xavier), do Brasil (Manuel da Nóbrega) e da África (Etiópia) e a quem entregou o Colégio das Artes de Coimbra. Apesar de esta ser uma atitude claramente repressiva, no inicio do reinado apresentou uma grande abertura ao exterior e até de alguma flexibilidade, situação que se alterou no final do seu reinado com a Inquisição e com Companhia de Jesus, e motivo pelo qual foi denegrida a sua imagem, passando a ser conhecido pelo “rei fanático”, conforme citação: “o longo reinado de D. João III (1521-57) pode ser dividido em dois grandes períodos (…): o príncipe tolerante, aberto às correntes internacionais do pensamento, louvado por humanistas e sempre disposto a acolhê-los, o verdadeiro Mecenas, deu lugar a um governante fanático e curto de vista, controlado pela Companhia de Jesus e os defensores de um estrita política de Contra-Reforma, mandando prender e condenar aqueles mesmos que antes convidara, mesquinhamente reduzindo despesas e subsídios, fechando escolas e geralmente isolando-se, e ao País, de influencias externas.” [7]
As principais políticas que se verificam ao longo do seu reinado são: políticas demográficas (consequência da debilidade demográfica), politicas de casamentos [8], e politicas de necessidade de afirmação do corpo do Rei, através da sua presença.
No campo cultural, nesta primeira parte do reinado, promoveu a cultura através da concessão de bolsas de estudo no estrangeiro, da fundação do Colégio das Artes, da instalação e revitalização da Universidade de Coimbra, e do auxílio à fundação de colégios pelos Jesuítas, ao ponto de granjear internacionalmente estima e prestígio [9].
A fase final do seu reinado ficou marcada pelo início das dificuldades económico-financeiras, e por uma influência progressivamente acentuada do espírito da Contra-Reforma, emanada do Concilio de Trento, o que se traduz nomeadamente na luta pelo alargamento de competências da Inquisição e na Institucionalização da censura às obras impressas [10].
Apesar de o monarca ter na segunda fase do seu mandato uma prestação menos positiva face ao que era expectável, o que lhe valeu uma imagem pejorativa, durante a primeira fase do seu reinado administrou com relativo sucesso Portugal e os territórios ultramarinos, e procedeu a uma reorganização administrativa civil, fiscal, eclesiástica e de delimitação de fronteiras [11], como resposta ao crescente aumento populacional, ainda que a reorganização não tenha sido pacífica.
Pelas palavras de Alves Dias, após a realização do numeramento, “o monarca estava habilitado a efectuar as reformas administrativas, judiciais e fiscais que um estado moderno impunha”, o que se verificou subsequentemente e administrativamente ao término do numeramento [12].
A densidade populacional sempre foi uma variável que serviu para classificar os povoados em lugares, vilas ou cidades, pelo que era uma ambição natural ascender nesta escala hierárquica, nas palavras de Alves Dias, queriam uma “nobilitação”. Ainda assim, era mais fácil passar de lugar a vila, do que de vila a cidade [13], o que gerava muitas vezes conflitos principalmente nos estratos mais baixos da população, muitas vezes ocultados por conflitos que suscitavam mais interesse, os produzidos no seio da corte.
Segundo Alves Dias, a constituição da fronteira nacional e a definição e implementação da organização administrativa concluída no século XIV, só sofreu alterações significativas com o “advento do Estado Moderno”, isto é, com a criação de novas comarcas no reinado de D. João III, fruto da dilatação da estrutura demográfica [14].
A nível local também se faz sentir a pressão demográfica, resultando na criação de novos concelhos, apesar de muito contestados, e no final do século XV e na primeira metade do século XVI, muitos lugares forma elevados a vila, e posteriormente elevados a concelhos [15]. Entre 1495 e 1545 foram criados 16 novas vilas que resultaram em 15 novos municípios, sendo que anteriormente, em igual período de tempo, entre 1445 e 1495, só tinham sido criadas 4 novas vilas, que resultaram em 4 novos concelhos [16]. Neste processo foram as regiões da Estremadura e do Alentejo que mais beneficiaram, cada uma com 6 novos concelhos cada [17]. O crescimento foi de tal forma denso que na impossibilidade de criar várias cidades em simultâneo, a coroa criou o título de “vila notável”, onde atribuía às vilas que já reuniam condições para ascender (mas não o poderiam fazer), prorrogativas idênticas às das cidades [18].
A expressão, “havia gente para tudo…Todo o país crescia” [19], evidencia claramente essa elevada densidade humana, que forçou novas exigências administrativas resultantes de uma cada vez mais complexa administração do espaço, que exigiu o aumento do número de funcionários públicos, bem como a divisão administrativa civil, isto é, uma maior divisão do espaço a administrar através dilatação da estrutura comarcal; entre 1532 e 1536 foram criadas 15 novas comarcas e somente extinta uma já existente, a de Alenquer [20].
Em simultâneo ao processo da reforma administrativa civil, trabalhou na solidificação da delimitação da fronteira (ainda registava problemas pontuais, do género, apropriação de pequenas parcelas de terras), e nesse sentido preservou os castelos que permitiam o controlo da fronteira, definiu locais para transaccionar produtos com a Espanha, e dotou sempre que possível esses espaços com funcionários alfandegários, e ainda mandou “patrulhar” os territórios de fronteira, esforço que se traduziu na definição concreta e objectiva da fronteira portuguesa, na década de 40 do século XVI, conseguindo estabilizar “a linha da raia” após longas negociações com Espanha [21]. Mais uma vez se verifica a necessidade de proteger o espaço, o que pode ser entendido como uma forma de proteger o crescente número de cidadãos que residiam em áreas raianas, e que cada vez mais precisavam de terrenos para agricultar, isto é, mais uma vez os efeitos da densidade demográfica se revêem na actuação do monarca.
Depois de concluída a reforma administrativa civil, e a delimitação de fronteiras, D. João III iniciou a reforma eclesiástica, ainda no início da década de 40 do século XVI, culminado este processo na criação de novas dioceses [22]. Porém, esta reorganização mostrou-se mais complicada que as anteriores, foi mais lenta, teve muita contestação porque o prelado não aceitava a redução do território que administrava e consequentemente das receitas que recebia, obrigando o monarca a utilizar algumas artimanhas para atingir os objectivos [23].
D. João III com grande perspicácia aproveitou o facto de se constituírem no ano de 1543 duas sedes vacantes [24], a “21 de Julho, a de Coimbra, por morte de D. Jorge de Almeida e, a 10 de Novembro, a de Braga, por morte do arcebispo infante D. Duarte” [25], adiou a nomeação de novos bispos e começou a pensar na fragmentação do território afecto a essas dioceses, sem que para isso tivesse consultado o Papa. Após ter delineado a nova estrutura administrativa eclesiástica a aplicar ao território destas dioceses, quatro meses depois de ter começado o plano, morreu o seu filho [26]. Neste período agravou-se o flagelo demográfico que se vinha a abater sobre a corte, que grosso modo tem inicio quando começaram as reformas administrativa civil, intensificando-se no inicio da reforma religiosa.
Posteriormente o monarca propôs ao Papa III uma comissão para estudar a criação de novos bispados, que foi aprovada e constituída, e viria a realizar um trabalho notável no âmbito da reestruturação eclesiástica a nível nacional, muito completo, elaborado com base no numeramento, e assente em três variáveis: “as rendas eclesiásticas, o número de fogos e a distância a que cada unidade administrativa ficava da nova sede proposta” [27].
Este plano de reforma definido pela comissão sofreu várias contestações ao longo da sua implementação, quase sempre em reacção à redução das rendas a receber pelas dioceses, inclusive a 16 de Fevereiro de 1545 D. João III teve de suspender o processo, com receio de uma possível não aprovação em Roma, já que a reforma fixava para diocese de Braga uma renda de 1.094$181, por exemplo, “inferior à dos simples bispados de Freixo e de Miranda” [28]. Aqui se verifica mais uma vez a actuação do monarca para tentar alterar o desfecho dos acontecimentos, e caminhando no sentido oposto à generalidade do prelado português.
Em 1549, em Roma, o representante do monarca português, Dr. Baltasar de Faria, dava conta de uma serie de dificuldades para aprovar a reforma, conforme citação: “muytas outras dificuldades se põem as quais spero de satisfazer e Vossa Alteza nam se spamte porque estes senhores, como vem que os príncipes por via de reformaçam lhes streitam as medidas trabalham de lhes respomder polas consoantes e vam lhes aos dados em quamto podem. Se Vossa Alteza soubesse os rigores que usam nas cousas do emperador e rey de França pera os excluir de meterem as maõs nas cousas de igreja spantar s ia” [29].As dificuldades surgiam de todos os quadrantes o que é representativo do poder da igreja e da sua influência em toda a cristandade. E contra este poder, não no sentido de antagonismo, mas no sentido de tentar reordenar o território português, sempre esteve D. João III, comandando um processo doloroso de reforma religiosa, suportando ao mesmo tempo o facto “de todos os nove filhos morrerem antes de atingir os dezanove anos de idade, juntamente com cinco irmãos e irmãs, e a maioria de todos nos finais da década de 1530 e nos começos da de 1540” [30].
Para agudizar a conjuntura já por si desmotivadora, intensificaram-se as pressões externas, principalmente por parte dos Reis Católicos e depois de Carlos V (pressões que já existiam desde o século XIV), questionando a passividade em relação aos “Cristãos-novos e outros fugitivos da Inquisição espanhola”, acusações que ainda mais afastavam D. João III do seu dever religioso como soberano, altura em que já tinha perdido muitos familiares, e em reacção o monarca abriu as portas à Inquisição em Portugal, podendo dizer-se, ainda que seja uma leitura abusiva, que também abriu a mente e entregou o alma à oração, tendo mesmo vestido preto nos últimos cinco anos em que foi rei [31].
Para concluir, porque as limitações de espaço assim o impõem, verificou-se em D. João III um conjunto de atitudes e comportamentos característicos de uma posição neutral ou liberal em relação às opções religiosas no inicio do seu reinado, o que foi profundamente antagónico face aos interesses do prelado e dos vizinhos espanhóis. Em sequência das sucessivas mortes em seu redor, de familiares que lhe estavam próximas, e sentindo-se responsável por essas mortes, resolveu culpar-se justificando estas mortes com as suas atitudes menos positivas em relação à Igreja, vivendo carregando esse sentimento de culpa, possivelmente considerando que se tratava de uma espécie de maldição divina resultante dos seus erros como rei, e daí que tenha abandonando os destinos do país, entregando-os à sua mulher, para se dedicar somente a Deus e à oração, vestindo-se mesmo de preto nos últimos anos de vida, sinal de uma morte lenta da sua alma. Tal como o diz A. H. de Oliveira Marques, que relaciona a debilidade demográfica ao “fanatismo religioso”, esse fanatismo podia ser o “único consolo de absolvição da culpa de tolerância para com os hereges, os Judeus e outros católicos tíbios” [32].
Notas:
[1] MARQUES, A. H. de Oliveira, História de Portugal: Das Origens ao Renascimento, Vol. I, 14.ª ed., Lisboa, Presença, 2010, p. 269.
[2] Foi o primeiro censo feito em Portugal que abrangeu todo o território (que se conheça).
[3] DIAS, João José Alves, Gentes e Espaços: em torno da população portuguesa na primeira metade do século XVI, Braga, edição da Fundação Calouste Gulbenkian e da Junta Nacional Investigação Cientifica e Tecnológica, 1996, p. 7.
[4] RIBEIRO, Orlando, Geografia de Portugal: O Povo Português, Lisboa, edições João Sá da Costa, 1989.
[5] MARQUES, A. H. de Oliveira, História de Portugal: Das Origens ao Renascimento, op. cit, p. 348.
[6] O comércio a nível local foi a solução encontrada para salvar o comércio do oriente, já que os portugueses não tinham mercadorias suficientes para a prática da troca comercial.
[7] Ibidem, pp. 346-347.
[8] “Durante o reinado de D. João III, realizaram-se quatro alianças matrimoniais, todas elas com Espanha (…)”. DIAS, João José Alves, “Portugal do Renascimento à Crise Dinástica”, coord., vol. V, Nova História de Portugal, direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, Lisboa, Presença, 1998, p. 737.
[9] Ibidem, pp. 731-732.
[10] Ibidem, p. 740.
[11] Ibidem, p. 727.
[12] DIAS, João José Alves, Gentes e Espaços: em torno da população portuguesa na primeira metade do século XVI, op cit, p. 208.
[13] Ibidem, pp. 183-184.
[14] Ibidem, p. 171. Chamo atenção para o facto de o autor referir indiscriminadamente o termos Estado para este período da Historia Moderna, e não procede à clarificação do termo, sendo que esse é um termo muito mais recente.
[15] Ibidem, p. 173.
[16] Ibidem, p. 180.
[17] Ibidem, p. 181.
[18] Ibidem, p. 184.
[19] Ibidem, p.7.
[20] Ibidem, p. 210.
[21] DIAS, João José Alves, “Portugal do Renascimento à Crise Dinástica”, coord., vol. V, Nova História de Portugal, direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, Lisboa, Presença, 1998, p. 730.
[22] DIAS, João José Alves, Gentes e Espaços: em torno da população portuguesa na primeira metade do século XVI, op cit, p. 239.
[23] Ibidem, p. 240.
[24] Sede vacante à luz do direito canónico da Igreja Católica Romana, refere-se a dioceses que por morte, renúncia ou transferência, ficaram se bispo, responsável por reger, visitar e governar.
[25] Ibidem, p. 240.
[26] Ibidem, p. 241.
[27] Ibidem, p. 263.
[28] Ibidem, p. 275.
[29] Ibidem, pp. 277-278.
[30] MARQUES, A. H. de Oliveira, História de Portugal: Das Origens ao Renascimento, op. cit, p. 347.
[31] DIAS, João José Alves, “Portugal do Renascimento à Crise Dinástica”, coord., vol. V, Nova História de Portugal, direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, Lisboa, Presença, 1998, p. 739.
[32] MARQUES, A. H. de Oliveira, op. cit, p. 347.
[12] DIAS, João José Alves, Gentes e Espaços: em torno da população portuguesa na primeira metade do século XVI, op cit, p. 208.
[13] Ibidem, pp. 183-184.
[14] Ibidem, p. 171. Chamo atenção para o facto de o autor referir indiscriminadamente o termos Estado para este período da Historia Moderna, e não procede à clarificação do termo, sendo que esse é um termo muito mais recente.
[15] Ibidem, p. 173.
[16] Ibidem, p. 180.
[17] Ibidem, p. 181.
[18] Ibidem, p. 184.
[19] Ibidem, p.7.
[20] Ibidem, p. 210.
[21] DIAS, João José Alves, “Portugal do Renascimento à Crise Dinástica”, coord., vol. V, Nova História de Portugal, direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, Lisboa, Presença, 1998, p. 730.
[22] DIAS, João José Alves, Gentes e Espaços: em torno da população portuguesa na primeira metade do século XVI, op cit, p. 239.
[23] Ibidem, p. 240.
[24] Sede vacante à luz do direito canónico da Igreja Católica Romana, refere-se a dioceses que por morte, renúncia ou transferência, ficaram se bispo, responsável por reger, visitar e governar.
[25] Ibidem, p. 240.
[26] Ibidem, p. 241.
[27] Ibidem, p. 263.
[28] Ibidem, p. 275.
[29] Ibidem, pp. 277-278.
[30] MARQUES, A. H. de Oliveira, História de Portugal: Das Origens ao Renascimento, op. cit, p. 347.
[31] DIAS, João José Alves, “Portugal do Renascimento à Crise Dinástica”, coord., vol. V, Nova História de Portugal, direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, Lisboa, Presença, 1998, p. 739.
[32] MARQUES, A. H. de Oliveira, op. cit, p. 347.
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