Comentário ao Texto:
“Da Cidade de Goa, suas Praças, Igrejas, Palácios e Outros Edifícios” in Viagem de Francisco Pyrard de Laval, Vol. II, Porto, Livraria Civilização, 1994, pp. 34-48.
Figura: Pintura de autor desconhecido representando a ilha de Goa; Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
Fonte: Saraiva, 1983: 447
O presente comentário, que recai sobre o capítulo III da obra de Pyrard, assenta principalmente na análise da arquitectura de Goa destacando os abundantes e grandiosos espaços religiosos, a actuação dos Jesuítas com um papel estruturante na difusão do cristianismo e como poderosos agentes de colonização, o ordenamento e as características da cidade (espaço urbano e rural), a disposição territorial das residências dos representantes do poder régio, as diferenças entre classes sociais, os abusos de poder e de autoridade, e sobretudo dá especial ênfase à segurança (já que a distante localização geográfica e a proximidade de reinos hostis levava a um estado militar de constante alerta), à actividade comercial e às instituições de controlo, inspecção e tributação.
François Pyrard inicia o capítulo III, abordando a segurança de Goa. Neste âmbito as afirmações do autor convergem para a falta de segurança no interior da ilha provocada pelo elevado crescimento da população e o consequente alargamento da malha urbana, ultrapassando os “antigos muros da cidade (…) altos e fortes (…) [e com] boas portas” (Pyrard, 1944: 34). Todavia, isto aparenta ser um reflexo da confiança resultante do elevado controlo e patrulhamento do estuário que dava acesso à ilha de Goa, às praças comerciais e consequentemente às principais portas da cidade, já que Pyrard também afirma que as praças são fechadas, controladas por porteiros e protegidas por bons muros, contínuos, que começavam na cidade e acabavam dentro do rio[1], e visam impedir o acesso às praças por saqueadores, nomeadamente à noite.
Goa era a para os portugueses a pérola do oriente. Esta realidade é bem retratada por Pyrard após trabalhar a segurança. Este, em poucas palavras, refere um conjunto de individualidades (Vice-rei, veador, oficiais régios e clérigos), um conjunto de actividades (emissão de moeda, fundição de artilharia ou outros equipamentos para apetrechar as armadas), um conjunto de infra-estruturas de afirmação do estado (igrejas, hospitais, palácios, conventos), um conjunto de espaços de comercio (praças), uma dinâmica empreendedora constante com praças muito frequentadas, com muita mão-de-obra, etc., enfim, como diz Pyrard, “ (…) seria coisa infinita dizer por miúdo todos os nomes das ruas, praças, igrejas, conventos, palácios e outras singularidades de Goa”. (Pyrard (b), 1944:45).
No primeiro capítulo do presente comentário indica-se que foi em Goa que Pyrard foi tratado, nomeadamente devido à importância do hospital. Isto não foi uma situação pontual. A importância de Goa para Portugal devido à sua riqueza, levou a que várias instituições se fixassem aí, e tornou-se uma “incarnação” de Portugal, tendo sido denominada de “Goa dourada”. É ao nível da religião que esta situação é mais evidente, isto porque D. João III para evitar querelas colocou cada ordem a monopolizar uma região; Jesuítas na China, Japão, sul da Índia, corte do Império Mongol, Tibete e Salsete; Franciscanos em Bardês e Ceilão; Dominicanos na costa ocidental africana, Malaca e Timor; e Agostinhos na Pérsia, Bengala e Birmânia.
Através de Pyrard pode verificar-se que em Goa estavam representadas todas as ordens, o que releva a importância e centralidade desta cidade como centro difusor do idealismo ocidental e suporte financeiro e cultural de Portugal[2]. Como suporte financeiro a Rua Direita é exemplo dessa confluência de riqueza em Goa: banqueiros, ourives, lapidários, etc.
O poder do vice-rei para toda a sociedade da Índia é deveras impressionante, e no capítulo II da obra em análise, o autor é mais directo, ao afirmar: “Esta cidade é a metrópole de todo o Estado dos portugueses nas Índias e a que lhe dá tanto poder, riqueza e celebridade. Tem nela o vice-rei a sua residência e é tratado com uma corte como se fora mesmo o rei”. (Pyrard, 1944: 27). Segundo Pyrard os locais consideravam o vice-rei ao nível do rei. Este disponha de uma guarda pessoal de 100 homens e era constituído por todos os poderes e autoridade sobre este espaço.
A distância a que o Oriente estava de Portugal aliciava esta dependência e proporcionava abusos de poder. Pyrard faz inúmeras referências ao abuso de poder do veador ao nível da apropriação de bens da coroa portuguesa e de abuso de autoridade junto dos artesãos, chegando a dizer: “Este veador tem dois meirinhos e um escrivão. Todos estes oficiais se concentram muito bem para roubar a gente”. (Pyrard, 1994: 36), não existindo ninguém “ (…) que possa fazer maior bôlsa e roubar tanto como ele” Pyrard, 1994: 37) apropriando-se de tudo que o sobra dos navios e que pertence ao reino, desde mantimentos a utensílios.
Ao veador competia a administração superior do Património Real e da Fazenda Pública da Vedoria da Índia, ou seja, um representante máximo do estado português da Índia; o que reforça a teoria da centralização em Goa de todo o centro de poder governativo, comercial, económico e de difusão cultural.
Outro ponto forte deste texto é a arquitectura existente, começando Pyrard por evidenciar a voluptuosidade dos aposentos do vice-rei, considerando-os ao mesmo tempo demasiado débeis face a potenciais ataques de artilharia contra a cidade. De acordo com Dias (1994:97) isto pode ser explicado “(…) devido ao facto de os Governadores e Vice-reis estarem relativamente pouco tempo no cargo e não se verem assim obrigados a fazer grandes investimentos, já que os tinham de pagar do seu bolso”.
O palácio servia de residência oficial aos Vice-reis e era ao mesmo tempo a sede do governo, constituindo-se como o coração político-administrativo do Estado da Índia. Era exuberado por portugueses e não portugueses apesar da sua estrutura “tipo armazém”[3], (…) pois para além de centro do poder, foi também um entreposto, onde as mercadorias preciosas e as obras de arte e artificinais esperavam a torna-viagem”. (Dias, 1994:97).
Toda a arquitectura é notória, nomeadamente aquela que visa fins religiosos, conforme o excelente trabalho de Fernandes (1994). São inúmeros os espaços religiosos edificados, desde igrejas a mesquitas, atingindo maior destaque uma imagem em vulto, toda dourada, de Santa Catarina (padroeira da cidade), localizada à porta da cidade.
A expressividade religiosa foi acompanhada pela presença de representantes da alta hierarquia da igreja, com destaque para o Arcebispo e para o Bispo, e cimentada pela edificação de grandiosos espaços religiosos afectos à devoção das várias ordens, muitas vezes trabalhados em folha de ouro, demonstrando a grandiosidade da obra do Senhor e a riqueza do oriente. Em suma, mais um reforço dos poderes agora religiosos, assumindo Goa o controlo religioso de todo Estado Português da Índia.
Apesar dos inúmeros espaços religiosos dispersos por todo o espaço geográfico de Goa, é visível a existência de um cluster religioso na Rua Direita, constituído pela Casa da Santa Inquisição[4], pela casa do Arcebispo e pela Casa do Bispo à qual anexa a prisão eclesiástica. Em redor deste núcleo encontrava-se o convento dos franciscanos, a casa do vice-rei e a “ (…) casa da Governança da cidade, a que chamam a Câmara da Cidade”. (Pyrard (b), 1994: 43).
São várias as ilações a tirar. Se transpormos a estrutura funcional elencada à actual concentração funcional na Cidade de Lisboa, apercebemo-nos que já no século XVI Goa era a Capital do Oriente. A distribuição do poder dos vários domínios era em tudo semelhante à actual, somente em proporções diferentes.
No âmbito religioso Pyrard faz uma referência precisa em relação ao número de igrejas jesuítas que existem em Goa, quatro igrejas, mas não faz o mesmo em relação aos restantes espaços religiosos, dizendo somente: “ (…) de sorte que na cidade, arrabaldes e por tôda a ilha, andam próximamente por cinquenta entre igrejas e conventos”. (Pyrard (b), 1944:45). Mais ainda, precisa em relação ao número de crentes da igreja Jesuíta e clarifica que os Jesuítas nada levam aos estudantes pelo ensino, tanto a portugueses como índios, nem muito menos forçam a conversão dos “infiéis”:
Sermão antes do baptismo dos infiéis: (…) não deviam abraçar por força e que, se algum deles aí havia que viesse contra sua vontade, se podia ir embora e sair logo da igreja; ao que todos responderam a uma voz que eram mui contentes e queriam morrer na fé católica”. (Pyrard, 1944:46).
Parece subjacente às suas palavras, até pela forma como descreve as igrejas jesuítas e os seus procedimentos, o seu agrado com esta doutrina religiosa. Porém, poderá igualmente depreender-se das suas palavras que a ajuda monetária que os frades jesuítas atribuíam todos os anos aos índios mais desfavorecidos, que se tivessem convertido à fé católica, “poderia” servir de aliciamento.
À semelhança dos espaços comerciais, intencionalmente localizados junto ao rio, também existia uma clara intenção de edificação de monumentos de carácter religioso para realçar a cristianização levada a cabo pelos portugueses no oriente, não só junto ao rio, mas junto a áreas comerciais, pelo simbolismo, pela acção prática e pela protecção divina.
Albuquerque (1994:463) diz mesmo que “do ponto de vista religioso, Goa foi considerada a Roma do Oriente, dela tendo irradiado a actividade missionária de S. Francisco Xavier e introduzida a inquisição em 1560”.
Apesar de todo o capítulo III da obra de Pyrard (b) (1944) fazer referência à imponente arquitectura, sou forçado a recorrer ao capítulo II da mesma obra para exemplificar a grandeza desta arquitectura, pois parece que é aqui que assume maior ênfase evitando explicações adicionais em prol de tal clareza e instrução: “Nesta ilha, os portugueses têm fabricado uma mui bela cidade (…) chamada Goa (…) que encerra quantidade de fortalezas, igrejas e casas fabricadas a modo da Europa, de mui boa pedra e cobertas de telhas. Há quase 110 anos que os portugueses se senhoriam desta ilha de Goa; e muitas vezes me espantei de como, em tão poucos anos, os portugueses têm podido levantar tantos e tão soberbos edifícios de igrejas, mosteiros, palácios, fortalezas e outros ao modo da Europa, e outrossim da boa ordem, regimento e policia que têm estabelecido, e do poder que aí têm adquirido, pois tudo ali se guarda e observa como se fora na própria Lisboa”. (Pyrard, 1944:26-27). Após ter abordado as grandes linhas presentes no documento, cristianização, urbanismo, segurança, abuso de poder e de autoridade da máquina fiscal, etc., é tempo de referir a estruturação da cidade. Segundo as palavras de Pyrard (1944) a cidade de Goa está bem organizada espacialmente, e à semelhança da estrutura arquitectónica, esta é em tudo semelhante à cidade de Lisboa. Em jeito de síntese, evidencia-se: A última página identifica os materiais de construção, sendo que se verifica uma aproximação ao modelo europeu, apesar da utilização de materiais provenientes de todo o Oceano Índico. A combinação de materiais de origem asiática com técnicas europeias está na base da descaracterização de Goa perante a cultura árabe, transformando esta cidade para sempre, imortalizando os feitos heróicos dos descobrimentos portugueses. A utilização de telhas na cobertura das casas, a produção de edifícios muito amplos com poucos andares e caiados de vermelho e banco, bem como a calçada de pedra, são alguns dos elementos imortalizados que ainda hoje caracterizam a Goa Velha. (Fernandes, 1994) & (Henriques, 1994). Esta última página não só remete à actual Goa Velha, como permite perceber, pela riqueza das matérias-primas existentes na Ásia, que Goa não se baseava somente num centro onde afluíam especiarias, mas também era um centro que fazia a ligação entre todo o oceano Índico, permitindo a Portugal, durante vários séculos, ter acesso ao que de melhor se produzia no mundo asiático: pimenta, gengibre, canela, arroz, cavalos, elefantes, tecidos de algodão e sedas da China, ouro, prata, diamantes, safiras, rubis, marfim, escravos, ópio, cânfora, sândalo, porcelanas, etc, e fazer a ponte para o mundo ocidental afirmando o nome de Portugal. Muito haveria a dizer em relação ao documento analisado, mas tornou-se necessário seleccionar as principais ideias de forma a cumprir as determinações. Para terminar não poderia deixar de colocar uma frase de B.K.Bohman-Behram´s traduzida por Monteiro (2002): “Os portugueses tinham feito mais que governar Goa. Tinham iniciado um processo histórico que na plenitude do tempo fez do povo goês uma unidade intimamente ligada à família lusitana”[1]. As praças comerciais confinavam, de um lado com rio e de outro com a cidade. Compreende-se o porquê de as praças estarem encravadas entre os locais de chegada de mercadoria, controladas e defendidas por artilharia, e a cidade. Esta politica de proximidade permitia um maior controlo e uma maior defesa. BIBLIOGRAFIA ALBUQUERQUE, Luís (1994) (dir.), Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, Volume I, Coordenação de Francisco Contente Domingues, Editora Caminho, Lisboa, pág. 463. LACOMBE, Américo (1979), História do Brasil, edição da Companhia Editora Nacional, São Paulo. _________________________________________________________________
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[2] Quando os Portugueses começaram a transportar produtos da Índia para a Europa, deu-se uma afirmação cultural do estado Lusitano, difundindo as suas capacidades.
[3] Constituído por um vasto conjunto de “ (…) câmaras, recâmaras, antecâmaras, casas-fortes e armazéns”. (Dias, 1994:97).
[4] O Tribunal do Santo Ofício de Goa, fundado por ordem régia em 1560, começou efectivamente a funcionar com a chegada dos dois primeiros inquisidores, Aleixo Dias Falcão e Francisco Marques Botelho, no início de 1561. (Bethencourt, 1995).
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