ARENDT, Hannah (2004), «O Declínio do Estado-Nação e o Fim dos Direitos do Homem» in Origens do Totalitarismo, Dom Quixote, Lisboa, pp. 353-399.
Para melhor se compreender As Origens do Totalitarismo (1951) de Hannah Arendt, decidiu-se, em termos metodológicos, dividir o texto em três partes: (i) a autora, (ii) o contexto, (iii) o texto.
Na produção da recensão crítica, optou-se por sair das «fronteiras» estritas do texto Hannah, invocando outros autores, cujos «territórios» disciplinares são transversais e encaixam em muitos domínios no texto em análise.
De forma a reduzir a dimensão do ensaio final fez-se um texto corrido, deixando um espaço duplo, separando as partes que compõem a recensão.
Segundo Young-Bruehl (2004) , conhecer a vida de Hannah Arendt é essencial para compreender a sua obra. Esta ideia parece assertiva na medida que a autora partiu da sua “própria experiência-limite de apátrida, a quem todos os direitos foram negados com a supressão do elementar direito de cidadania”. (Borges, 2005:132).
Hannah nasceu em 1906, em Hanover, e faleceu em New York, em 1975 (Wagner, 2002:22). Destacou-se ao lado de grandes pensadores e ideólogos como John Locke, Enrico Belinguer e Martin Luther King. (Mondaini, 2006).
Em 1924 concluiu o Ensino Secundário e ingressou na Universidade de Marburg, na Alemanha. Foi aluna do filósofo Martin Heidegger de quem recebeu fortes influências e com quem teve um curto relacionamento amoroso. (Mondaini, 2006).
No ano seguinte transferiu-se para a Universidade de Freiburg, na Alemanha, onde foi aluna de Admund Husserl, e em 1926 mudou-se para a Universidade de Heidelberg (uma das mais prestigiadas Universidades da Alemanha) onde acabaria por se formar em filosofia. Teve como professor o filósofo Karl Jaspers, com quem estabeleceu uma longa e douradura amizade pessoal e intelectual. Ainda nesta Universidade, e sob a orientação de Karl Jaspers, em 1929, concluiu a sua tese de doutoramento, intitulada de Der Liebesbegriff bei Augustin. (Arendt, 2006:online, Mondaini, 2006).
Entretanto, Adolf Hitler absorvido num forte anti-semitismo racial ascende à liderança do Partido dos Trabalhadores Alemães (DAP) e altera o nome do partido para Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), vulgarmente conhecido como Partido Nazi ou Nazista. Em 1933 o Partido Nazi sobe ao poder e Hannah Arendt é forçada a abandonar a Alemanha, iniciando um percurso perigoso e sinuoso que vai estar na origem da sua produção literária, para a qual contribuiu a densa formação que recebeu na Universidade. (Young-Bruehl, 2004).
Após sair da Alemanha passou por Praga, Genebra, até chegar a Paris, onde durante seis anos trabalhou com várias organizações que apoiavam os refugiados judeus. (Arendt, 2006:online). Durante a sua permanência em França trocou impressões com vários pensadores, destando-se o escritor Walter Benjamin. (Arendt, 2006:online).
Em 1941, no âmbito da Segunda Guerra Mundial, a França foi invadida pela Alemanha e ficou a ser governada por Vichy, um governo de influência Nazi. Os franceses ficaram obrigados a pagar os custos de ocupação às tropas alemãs, bem como, entre outras coisas, a entregar todos os judeus de França à Alemanha. Neste contexto, Hannah como era judia foi enviada para um campo de concentração, em Gurs, sob a acusação de Estrangeira Suspeita, de onde conseguiria fugir para New York, em Maio de 1941. (Young-Bruehl, 2004).
Apesar de descender de família hebraica não foi educada segundo a tradição judia e sempre professou a sua fé em Deus de forma livre, daí ter dedicado quase toda a sua vida a compreender o destino do povo judeu perseguido por Hitler. Entende-se o seu sentimento de revolta pela reiterada falta de interesse do Estado alemão nos Direitos Humanos, bem como o seu contributo para a compreensão do totalitarismo. (Arendt, 2006:online).
Em New York rapidamente integrou um grupo de cidadãos influente, intelectuais e escritores, em torno da revista Partisan Review, mais tarde leccionou em várias Universidades (Princeton, Berkeley e Chicago) e terminou a sua carreira como professora de filosofia política na New School for Social Research.
Das suas obras destacam-se, As Origens do Totalitarismo (1951); A Condição Humana (1958); Eichmann em Jerusalém (1963); The Life of the Mind (1978); Lições de Filosofia Política de Kant (1982).
O texto de Hannah Arendt em análise foi produzido em meados do século XX, após o flagelo que tinha sido os primeiros cinquenta anos do século XX, onde decorreram duas guerras mundiais separadas por uma grave crise económica sem precedentes na História da Humanidade, onde morreram milhões de pessoas e outras tantas ficaram feridas, deficientes, desalojadas, sem acesso a alimentação, sem recursos de saúde e com doenças para tratar, sem terra e sem casa, sem Estado protector, consideradas pelo poder decisório como animais e não como Seres Humanos, já que foram esquecidas, subjugadas ou renegadas. (Samuelson & Nordhaus, 200; Arendt, 2006:online).
Quando Hannah conseguiu a cidadania norte-americana decidiu lutar com veemência os regimes totalitários (ou absolutos), condenando-os nos livros anteriormente mencionados, nomeadamente o nazismo com a luta de raças e o soviético com a luta de classes. Foi neste contexto que surgiu As Origens do Totalitarismo, durante o seu percurso académico depois de ter chegado aos Estados-Unidos. (Sarendt, 2004; Young-Bruehl, 2004).
A obra em si é um marco histórico, tem um elevado rigor contextual, representa a excelência da autora, dotada de informação credível e bem fundamentada, e não parece errado afirmar que apesar de não esgotar o tema, aprofunda-o a níveis quase de pormenor, principalmente ao nível dos exemplos, que evidenciam a sua vivência auto-biográfica nos acontecimentos narrados.
Esta obra é, ainda hoje, um dos maiores contributos para a compreensão do totalitarismo, considerada mesmo como um clássico. A crítica que a obra faz aos regimes totalitários é pertinente, numa época em que ainda vigoram regimes com estas características e, mais do que isso, num terreno onde a democracia liberal não afastou por completo os vestígios de uma ideologia de terror que torna o homem supérfluo. (Young-Bruehl, 2004; Arendt, 2006:online).
Hannah Arendt aborda «O Declínio do Estado-Nação e o Fim dos Direitos do Homem», no capítulo nono da sua obra intitulada, As Origens do Totalitarismo. Fruto do seu percurso de vida, este capítulo vai incidir, sobretudo, na primeira metade do século XX, no contexto geográfico europeu e vai dar ênfase ao princípio de Cidadania aceite na Europa em 1919, após a Primeira Guerra Mundial. (Oommen, 1994).
A autora dividiu o capítulo em duas partes, precedidas de um texto inicial, muito sintético, que resume de forma conclusiva o artigo:
1- “A nação minoritária e os povos sem Estado” (Arendt, 2004:357).
2- “Perplexidade dos Direitos do Homem” (Arendt, 2004:385).
Este capítulo está estruturado de forma simples, de fácil leitura e directo na forma como transmite a informação ao leitor. Começa por abordar a Primeira Guerra Mundial, reflectindo e criticando a sua existência, e ao mesmo tempo ilustrando o que irremediavelmente este conflito causou, desde mortes, desemprego, instabilidade política/social, e consequentemente, movimentações de refugiados desprovidos de qualquer ajuda por parte dos governos que os representam, mais interessados numa ideologia de terror desvalorizando o real valor da vida humana. Refere-se ainda aos sucessivos conflitos que ocorreram depois do fim da Grande Guerra, e destaca as populações que não foram apoiadas, às que foram desvalorizadas e passadas para um plano inferior dentro das prioridades estatais, recordando que o espírito dos governos era o de guerrear até ao último suspiro, não olhando a métodos para atingir os fins.
A autora refere-se a estes acontecimentos de forma muito clara e firme, demonstrando as fragilidades dos cidadãos face às adversidades, que num parágrafo resume quase todo o capítulo: “ [os cidadãos] uma vez fora do país de origem, permaneciam sem lei; quando deixavam o seu Estado, tornavam-se apátridas; quando perdiam os seus direitos: eram o refugo da terra”. A autora nas frases seguintes continua de forma veemente a distribuir culpas pela política totalitária consciente, como fonte destruidora do que designa de “estrutura da civilização europeia” (Arendt, 2004:353).
Hannah considera os grandes conflitos bélicos que se deram na Europa instrumentos de desintegração, responsáveis pelo colapso de quatro impérios e mudando de forma radical do mapa geo-político da Europa e do Médio Oriente. Do ponto de vista das populações que viviam no cenário de guerra, segundo a autora, a desintegração social/cultural deu-se de forma mais intensa do lado dos países que perderam a guerra , nomeadamente nos “Estados recém-establecidos após a liquidação da monarquia dos Habsburgos e do império czarista” (Arendt, 2004:354), levando a conflitos constantes entre si e entre próximos: “ (…) eslavos contra checos, os croatas contra sérvios, os ucranianos contra os polacos”. (Arendt, 2004:355).
Partindo deste exemplo que exemplifica as falhas de uma política totalitária, a autora transita para as vítimas deste tipo de política: as pessoas, e destaca as suas principais carências, tais como a privação da posição social, da possibilidade de trabalhar e do direito de ter propriedade, que diz resultar na criação de grupos sociais marginalizados, os apátridas e as minorias, que segundo a autora, viram os seus direitos desaparecer, direitos que deveriam ser irrevogáveis e intransmissíveis, logo permanentes.
Ao longo de vários parágrafos a autora crítica a ausência dos direitos humanos para aqueles que tinham perdido os direitos nacionais (povos sem Estado), a forma como os opressores imprimiam os seus valores aos povos desnacionalizados, a reprovável exclusão social dos dispensáveis ou indesejáveis (judeus, trotskistas), e conclui com palavras fortes afirmando que a “ (…) própria expressão “direitos humanos” tornou-se para todos os interessados – vítimas, opressores e espectadores – uma prova de idealismo fútil ou de tonta e leviana hipocrisia”. (Arendt, 2004:357).
Depois de fortes críticas ao modelo de política totalitária, a autora aprofunda o tema da nação minoritária e dos povos sem Estado, iniciando a parte um do artigo.
Antes de abordar a primeira parte parece pertinente reflectir sobre os termos que ela apresenta, nomeadamente «Estado» e «Nação», ou seja, causa e consequência da resposta original. Apercebe-se que a Nação surge porque existe o “nacionalismo”; é este que lhe dá forma. E surge numa relação biunívoca com o Estado. Este, em certa medida, pode dizer-se que faz a Nação, confirmando a célebre frase de Mãssimo D´Azeglio: «fizemos a Itália, agora teremos de fazer os italianos». Ou seja, o Estado como entidade política com contornos mais definidos e menos ambíguos tende a identificar-se com a Nação, ao mesmo tempo que a Nação tende a buscar no Estado a sua plena legitimação. Deste modo, pode-se afirmar que o “nacionalismo” é tão antigo como a humanidade. (Oommen, 1994).
Percebendo a diferença entre estes dois termos torna-se mais fácil perceber Hannah, quando se refere de forma crítica aos tratados de paz; tratados que começaram a surgir depois da Grande Guerra visando “acomodar” no espaço os refugiados e suprir rebeliões, acabando por propiciar o aparecimento de minorias étnicas a lutar pela sua identidade, que a autora designa de nações minoritárias. (Arendt, 2004).
A autora reprova de forma incessante os fundamentos dos tratados de paz assinados após a primeira Guerra Mundial, demonstrando que o seu desajustamento, ou insucesso, se deve ao facto de os seus criadores pertencerem a uma geração formada antes do conflito bélico, que nunca chegou a perceber o verdadeiro impacto da guerra.
Critica o facto de quererem criar Estados-nação pelos métodos dos tratados de paz, e principalmente, a questão da realização de tratados aglutinadores onde as fronteiras políticas não coincidem com as fronteiras nacionais. De facto, isto é uma realidade que antes da Grande Guerra já se tinha verificado e ainda se continua a verificar actualmente. Por exemplo, no rescaldo das guerras napoleónicas, a Europa apresentar-se-ia com um novo desenho traçado a régua e a esquadro pelo plano Pitt (Primeiro Ministro inglês) com total alheamento de quaisquer preocupações de homogeneidade étnica e cultural. Contudo, a ideia de autodeterminação nacional estava ainda longe de ser inventada. Mais tarde, em África, o traçado das fronteiras dos novos Estados foi igualmente efectuado ao abrigo do mais puro arbítrio. Daqui resultou, na modernidade, os conflitos de cariz nacionalista entre pessoas que não se identificam mas que têm de dividir o mesmo espaço físico. (Ferreira, 2002).
Responsabiliza os tratados de paz pela desacreditação dos Estados recém-criados e por permitirem que os povos que não foram “agraciados” com um Estado, considerassem os tratados de paz uma fraude, que favorecia uns e escravizava outros. (Arendt, 2004:358).
Afirma que os tratados de minorias, criados para proteger grupos humanos de pequena dimensão desprotegidos pelos tratados de paz, somente eram aplicados quando se verificava num conjunto de dois ou mais Estados , um número considerável de minorias de uma determinada nacionalidade, o que resultava num abandono irresponsável de um “colorido” de nacionalidades, que em alguns casos superava 50% da população total no interior de um único Estado; pessoas que viam os seus direitos desprezados, sem protecção, povos sem estado mas com sentido de existência e de pertença a um colectivo, que evitavam como podiam a perda das suas raízes culturais insistindo nas suas nacionalidades e recusando ligações a outras nacionalidades que pudessem diluir a pureza e independência das suas origens.
Hannah Arendt citando Webster (1929), ilustra esta realidade com números, explicando que até 1914 cerca de 100 milhões de pessoas não se sentiam realizadas nas suas ambições nacionalistas. Numa espécie de tom satírico, adverte que quando surgiram os povos sem estado caiu a desculpa dos países mais antigos que recusaram adoptar legislação de protecção dos direitos humanos, alegando terem constituições antigas e alicerçadas nos direitos humanos, citando especificamente o caso francês.
Apesar de uma crítica bem estruturada e fundamentada ao sistema político no âmbito dos tratados de minorias, reconhece, por um lado, que os responsáveis por estes acordos “ (…) não previram a possibilidade de transferências maciças de população, nem o problema de pessoas tornadas «indeportáveis» por falta de país de acolhimento”, e em consequência das altas densidades populações sem uma nação, optaram por repatriar “ (…) o maior número possível de nacionalidades a fim de desembaralhar «a fixa de população mistas» ”. (Arendt, 2004:366). Por outro lado, concede algum mérito aos tratados de minorias por “ (…) serem garantidos por uma entidade internacional, a Sociedade das Nações, (…) por reconhecerem a minoria como instituição permanente (…), e por criar um modus vivendi duradouro”. (Arendt, 2004:364).
A condição de apátrida (pessoas em qualquer nacionalidade) despoletada após a Segunda Guerra Mundial, nomeadamente com os casos de povos sem estado, foi uma consequência deste abusivo desinteresse pela vida humana. Por outro lado, a condição de apátrida foi uma forma de resistir à deportação para aqueles que não queriam ser deportados para uma pátria que apesar de ser a sua não era desejada, porque não era capaz de assegurar a segurança aos seus cidadãos.
O termo «apátrida» depois do grande conflito bélico foi “colado” ao termos «deslocados de guerra», através de uma manobra política que pretendia levar ao seu esquecimento, ou seja, formar um misto que estrangulasse a condição de apátrida através da anexação dos dois grupos sociais, atropelando a génese da sua constituição. Esta miscigenação entre apátridas e deslocados de guerra facilitava o método operativo das autoridades, que passava por repatriar todas as pessoas a quem não lhe fosse reconhecido figura jurídica de pessoa sem estado, mesmo que o país de origem dos repatriados não os aceitassem, ou que os aceitassem não como cidadãos mas para um eventual castigo.
A autora com alguma dureza ataca os países ditos desenvolvidos , considerando a sua política contemporânea “dolorosamente irónica” e desequilibrada, que insiste em considerar inalienáveis ou intransferíveis, os direitos humanos dos cidadãos desses países, mas ao mesmo tempo, de forma pouco ortodoxa e discriminatória, aceita e compactua em manobras que deixam outros cidadãos desprotegidos de qualquer direito humano; é uma atitude segregacionista e de intolerância que se manifesta até ao nível das estatísticas: reflecte-se na ausência total de estatísticas credíveis sobre o assunto. (Arendt, 2004:370).
Hannah confirma que os conflitos subsequentes ao pós-guerra alteraram imenso a vida das pessoas ao ponto de a sua nacionalidade se alterar de ano para ano, dependendo que quem exercia o poder, sendo que o normal era o Estado ocupante não reconhecer determinado grupo de pessoas como seus nacionais. A título de comparação, o professor doutor Sandro Mezzadra da Universidade de Bolonha, na Itália, ao estudar os movimentos migratórios e as suas consequências na Itália do século XXI, conclui que a política governamental e a legislação produzida no país fomenta um novo nacionalismo (com tons racistas) e leva à exclusão social dos imigrantes. (Mezzadra 2009:267). Em Espanha durante o ano de 2009 foram vários os actos racistas contra imigrantes, devido ao país estar em recessão e com uma taxa de desemprego na ordem dos 18%. De facto, quando o mundo do capitalismo não corresponde às expectativas das populações, mais uma vez são as minorias pobres que “pagam a factura” e (…) a pobreza força o homem livre a agir como escravo” (Arendt, 2001:79[1958]).
Apesar de um olhar controlador das nações ocidentais sobre estas populações, a deslocação massiva de milhares de apátridas provocou danos na estrutura até então vigente no Estado-nação, culminado na “ (…) abolição tácita do direito de asilo, antes símbolo dos direitos do Homem na esfera das relações internacionais”, principalmente quando se tratava de personalidades vincadas à politica, e no que a autora denomina de segundo choque, que “ (…) decorria da dupla constatação de que era impossível desfazer-se dos apátridas ou transformá-los em cidadãos do país de refúgio”., ou seja, dois extremos: “repatriação ou naturalização”. (Arendt, 2004:372-373).
Neste período e principalmente no auge deste problema, os legisladores fizerem muitos esforços no sentido de separar o termo apátrida do termo refugiado; porém, sem sucesso, tendo sido convencionado que todos os refugiados em termos práticos eram apátridas.
Como já referido anteriormente, muitos povos ficaram sem nacionalidade, sem Estado, mas nunca ficaram sem o sentimento de pertença a uma comunidade nacional. Isto levou os países desenvolvidos a desdobrarem-se em esforços para os expulsarem, nomeadamente aproveitando o facto destes não se enquadrarem nas estruturas legais da Lei para permitirem às suas forças de segurança metodologias extrajurídicas, não muito ortodoxas, que levassem à redução das minorias nos seus territórios. A oposição aos apátridas era de tal forma intensa, que, segundo a autora, um pequeno roubo dava mais direitos ao cidadão do que à própria condição de pessoa sem estado. Em tom de ironia a autora diz mesmo que um apátrida criminoso não podia ser tratado pior que outro criminoso; só assim, na condição de “transgressor da lei” o apátrida podia ser protegido pela própria Lei e tornar-se respeitável, ou seja, a única forma de ser enquadrado nas leis dos países. (Arendt, 2004:379).
Para Hannah Arendt existia uma excepção: os apátridas génios, não no sentido culto que a palavra actualmente suporta, mas no sentido da diferença, a título de exemplo, um fora-da-lei ou um psicopata assassino era um génio, porque produzia entusiasmo e diversão às classes mais abastadas da época.
De facto em sede de concertação internacional nunca foi possível no seio dos países desenvolvidos estabelecer e determinar uma condição legal ao estatuto de apátrida, e as restantes metodologias para trabalhar este tema, tais como a naturalização, foram um autêntico fracasso, já que “a diferença entre um residente naturalizado da de um residente apátrida não era suficiente para justificar o esforço de se naturalizar (…): o primeiro era frequentemente privado de direitos civis e ameaçado a qualquer momento com o destino do segundo”. (Arendt, 2004:378).
No final do primeiro ponto deste capítulo a autora recrimina a verdade utópica em que os países desenvolvidos se revestiam e afirma que “o Estado-nação não pode existir quando o princípio da igualdade perante a lei é quebrado”, ou seja, diz a estes estados que viviam numa ilusão totalmente confusos em relação aos reais valores da vida e do verdadeiro significado e simbologia do Estado-nação. (Arendt, 2004:384-385).
No segundo ponto do capítulo nono da obra supra indicada, a autora vai inicialmente debruçar-se sobre a história dos direitos humanos e conclui ilustrando o grau de aplicabilidade desses direitos às populações.
Começa por abordar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamada em França, em 1789, atribui-lhe a emancipação dos Homens da tutela de alguns estratos sociais, dos comandos de Deus, da História e das tradições, por ser uma Lei transversal às sociedades, mas ao mesmo tempo critica-a por se referir a um ser humano enigmático e inexistente, justificando que até os “selvagens viviam dentro de algum tipo de ordem social”. (Arendt, 2004:386).
Registo que uma das primeiras críticas levada a cabo contra a Declaração foi realizada por Karl Marx , em 1844, através da obra, A Questão Judaica, onde o filósofo assume que os Estados teoricamente conseguiam anular as diferenças de nascimento, da condição social, na cultura, na liberdade e igualdade de todos perante o exercício da soberania popular, mas deixaram intacta, como que um privilégio, a propriedade privada, a cultura e a ocupação, pois o plano político para funcionar tinha que se sobrepor ao plano civil. Assim, os Direitos Humanos fragmentavam-se, erradamente, entre Direitos do Homem e Direitos do Cidadão, conforme citação seguinte de Marx (2005 [1844]:34): “Os direitos humanos, distinguem-se, como tais, dos direitos civis. Qual o homem que aqui se distingue do cidadão? Simplesmente, o membro da sociedade burguesa. Por que se chama o membro da sociedade burguesa de "homem", homem por antonomásia, e dá-se a seus direitos o nome de direitos humanos? Como explicar o facto? Pelas relações entre o Estado político e a sociedade burguesa, pela essência da emancipação política”.
Para Agamben (2003) o próprio título da Declaração é dúbio e enviesa a sua leitura, ficando o leitor na dúvida se se refere a duas realidades distintas mas autónomas ou se a um sistema único, onde o homem aparece incorporado e camuflado na imagem do cidadão.
Especialista na questão do Estado de excepção, responsável pela edição italiana da obra de Walter Benjamin, este filósofo italiano indica-nos alguns modelos possíveis de regulamentação do estado de excepção, seja através do texto da constituição, como nos casos da França e Alemanha, seja através de uma lei, como nos casos da Itália, da Suíça, do Reino Unido e dos Estados Unidos.
Entende-se por Estado de excepção o oposto de um Estado de direito . É decretado pelas autoridades nacionais, são concentrados os poderes e suspende de forma temporária os direitos e garantias constitucionais, ou seja, torna-se um Estado Democrático totalitarista, que se pode comparar com a repressão sobre as minorias de que fala Hannah Arendt, já que mesmo na actualidade a suspensão dos direitos dos cidadãos pode remeter para situações abusivas e de descontrolo das funções governativas, como se verificou recentemente em prol da catástrofe natural que atingiu o Haiti.
Ao referir Giorgio Agamben é forçoso referir Carl Schmitt como seu oposto. Este último foi um grande especialista alemão em direito constitucional e internacional, jurista e filósofo. Porém, a sua carreira só não é de todo brilhante aos olhos da sua contemporaneidade porque se “alistou” no regime nacional-socialista, tornando-se um adversário da democracia liberal. Para Schmitt era impossível regular por leis aquilo que por definição não podia ser normalizado, contrastando com Agamben.
A autora atribui o fundamento dos Direitos do Homem à Revolução Americana de 1776, que teve as suas origens na assinatura do Tratado de Paris, em 1763, e à Revolução Francesa, entre 1789 e 1799, uma das maiores revoluções da história da humanidade que aboliu a servidão e os direitos feudais e proclamou os princípios universais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
Segundo Marx (2005 [1844]) a revolução francesa apesar de todas as suas ambivalências transpôs fronteiras e proclamou a liberdade, igualdade e fraternidade, mas libertou um homem mau e egoísta, já que os Direitos do Cidadão ficaram subordinados aos Direitos do Homem - desse homem mau e egoísta -, ou seja, a Revolução Americana e a Francesa instituíram uma ideologia dos direitos do homem e do cidadão, e uma ideologia burguesa que se voltava contra o reino de arbitrariedade do feudalismo, mas também, ao mesmo tempo, para a defesa dos interesses da classe mais exploradora, a burguesia.
Numa síntese da sua evolução histórica, a autora refere-se ao século XVIII como um período negligente no processo de desenvolvimento dos Direitos Humanos, onde foi notável a incapacidade de defesa dos indivíduos do constante crescimento do poder dos Estados, e da insegurança social causada pela revolução industrial. Considera que o século XIX também não trouxe melhorias ao conceito, antes pelo contrário, permitiu a sua marginalização pela ideologia política, e que o século XX continuou a ignorar este assunto, já que não foi contemplado nas agendas políticas dos partidos liberais.
Hannah Arendt satiriza a efectiva ausência de Direitos Humanos dizendo que não era estranho uma pessoa perder o seu lar, o que era estranho era que essa mesma pessoa nunca mais o pudesse recuperar, e critica o modelo político e diplomático que os eruditos criaram no século XX, dizendo ser um modelo em forma de círculo (a família das nações), fechado ao exterior e fechado a quem fosse expulso do círculo, que se protegia entre si e esquecia os demais povos, quando os direitos e deveres das Nações não dependiam apenas de acordos, tratados e resoluções dos organismos internacionais, mas encontravam o seu fundamento na dignidade idêntica de todos os homens e mulheres individualmente, sejam eles cidadãos ou estrangeiros.
A autora crítica todos os tratados com estatuto de excepcionais, que serviam para remediar, estratificar e padronizar, deixando de fora os casos não lineares. Dá como exemplo os tratados de reciprocidade (assinados depois dos conflitos bélicos), que deixaram de servir as necessidades quando se diversificaram as categorias de perseguidos; se é que alguma vez se chegaram a adequar à realidade.
Considera escandaloso que a justiça passasse a ser pensada em termos de castigos, ou seja, os juízes partiam para a acusação com o pressuposto que os acusados eram efectivamente culpados, antes que se averiguasse o que quer que fosse, levando à desconsideração total e perda de direitos humanos. É uma constante as ironias da autora ao longo do texto e neste tema não fugiu á regra, citando Anatole France: “se eu for acusado de roubar as torres de Notre Dame o mais que posso fazer é fugir do país”. (Arendt, 2004:391). De facto, a justiça estava tão enviesada que era desacreditada. Nesta citação verifica-se a clara impossibilidade de consumar tal furto, mas parece evidente pelas palavras da autora que a questão não passava pela verdade, mas sim pela prova culpa, ainda que injustificável, utópica ou mesmo anormal.
Para concluir este capítulo vou cita-se uma frase de Hannah Arendt que expressa o expoente máximo da indiferença por parte dos países desenvolvidos na questão das pessoas sem Estado, e a angústia em que viviam os oprimidos perante uma desigualdade que traduzida por palavras daria qualquer coisa como, pessoas de primeira e pessoas de segunda classe:
“ O soldado durante a guerra é privado do seu direito à vida; o criminoso, do seu direito à liberdade; todos os cidadãos, o direito de procurarem a felicidade; mas ninguém dirá jamais que em qualquer destes casos houve uma perda de direitos humanos. (…) A sua situação angustiante não resulta do facto de não serem iguais perante a lei, mas sim de não existirem mais leis para eles; não serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais que se interesse por eles nem que seja para oprimi-los. (…) Os próprios nazis começaram a sua exterminação dos judeus privando-os, primeiro, de toda a condição legal (…) e separando-os do mundo para os juntar em guetos e campos de concentração (…). São privados não do seu direito à liberdade, mas do direito à acção; não do direito de pensarem o que quiserem, mas do direito de opinarem. Privilégios (em alguns casos), injustiças (na maioria das vezes), bênçãos ou ruína ser-lhes-ão dadas ao sabor do acaso e sem qualquer relação com o que fazem, fizeram ou venham a fazer”. (Arendt, 2004:392-393).
A leitura do texto é de excelente qualidade, permite pensar e reflectir sobre questões que são geralmente enevoadas pela sociedade e deveria ser um texto de leitura de massas pela sua riqueza histórica e científica. Não obstante, permite algumas críticas, a começar pelo título da obra.
Souki (2006:47) que se revê e fundamenta nas palavras de Enegrén (1984), diz que o título da obra de Hannah Arendt é “enganoso”, porque “o totalitarismo é um fenómeno sem precedentes, e nenhuma evolução histórica, perfeitamente articulada, poder dar conta plenamente de suas origens”. Porém, no sentido oposto, outras vozes se levantam e dizem que o totalitarismo nunca existiu até ao século XIX porque era limitado pela ausência de acessibilidades e comunicações.
Apesar da contradição, na verdade, os filósofos que viveram no século XIX, nomeadamente Hannah Arendt, caracterizam-se por uma reflexão da filósofa com origem numa espécie de pasmo e de choque, em parte devido aos flagelos impostos pelos grandes conflitos bélicos, nomeadamente o genocídio de minorias nos campos de concentração por parte dos nazis.
Enegrén (1984) e Souki (2006), estes dois grandes filósofos, fazem referência a esta visão negra e de algum modo negativa, que se compara, se é que é possível fazer comparações, com a nossa ideia moderna de Idade Média: um longo período de retrocesso, trevas, guerras, fomes e mortes. Noutro aspecto, que também tem algum sentido apesar de ser a título de curiosidade, Souki (2006) diz que a obra de Arendt é mais socióloga do que histórica.
Ao longo da segunda parte do capítulo verifica-se que a autora menciona datas, nomeadamente quando se refere à evolução dos Direitos Humanos, entre os séculos XVIII e XX. Contudo, as origens dos direitos do homem, entendidos como um conjunto de normas que visam proteger o ser humano de excessos por parte dos órgãos do Estado, perdem-se nas brumas da história e confundem-se na luta do homem pelos seus direitos e liberdades inerentes à sua condição e dignidade. A título de exemplo, o Código de Hamurabi tinha a preocupação de impor leis para proteger as viúvas, os órfãos e os fracos, ou seja, visava uma uniformização cultural e um equilíbrio social, e assim deve ser considerado um dos primeiros textos elaborados na defesa dos Direitos Humanos. Concluindo, parece-me que a forma de descrição exaustiva e metódica que a autora adoptou ao longo de todo o capítulo nono não se verifica nesta temática na segunda parte, ficando a ideia que autora abordou a questão com mais superficialidade.
Ainda no âmbito da segunda parte do capítulo nono, não posso deixar de comentar (alerto, sem qualquer fundamento comprovável) a passagem do texto em que a autora escreve: “Os Direitos do Homem, solenemente proclamados pelas Revoluções Francesa e Americana, como novo fundamento para as sociedades civilizadas…” (Arendt, 2004:88). O que me chamou a atenção nesta passagem foi o facto de pela primeira vez no texto a autora não se referir aos acontecimentos de forma cronológica, ou seja, neste aspecto concreto, primeiro deu-se a revolução Americana e depois a Francesa; o contrário do que Hannah Arendt escreveu.
Concluindo o ensaio, a historiografia do século XIX veiculava a história política, os grandes feitos, os grandes homens, os grandes acontecimentos, no fundo escrevia aquilo que as grandes patentes gostavam de ouvir. Nesta sequência, percebe-se o porquê das minorias serem retratadas desta forma, esquecidas, abandonadas, até mesmo, desprezadas, tornando-se inconvenientes e supérfluas aos olhos dos países ditos ocidentais ou desenvolvidos, que possuíam grande estabilidade política e uniformizarão cultural.
Do ponto de vista das minorias, como diz Miguel Alves dos Santos na obra coordenada por Boaventura de Sousa Santos, "(…) A revolta que sempre tive e o meu sofrimento que sempre passei é ser uma pessoa discriminada, uma pessoa que luta, de luta de classes, e ser descriminadá". (Santos, 2008:73).
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