28/04/10

Comentário ao texto: «El siglo de la “revolución diplomática, 1714-1794», Diplomacia y relaciones exteriores en la Edad Moderna.

A presente recensão recai sobre o capítulo número sete, intitulado «El siglo de la «revolución diplomática», 1714-1794», da obra Diplomacia y relaciones exteriores en la Edad Moderna, 1453-1794, editada pela Alianza, no ano de 2000, em Madrid, da autoria de Manuel Rivero Rodrigues. (Rivero Rodríguez, 2000).

Apresentação do texto em aula prática







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Manuel Rivero Rodriguez nasceu em Madrid em 1962. Ao longo do seu percurso académico investigou e realizou inúmeras publicações no âmbito das relações diplomáticas na Idade Moderna, da Monarquia Hispânica em Itália, e dos laços políticos, religiosos e culturais entre Itália e Espanha durante os séculos XVI e XVII. Actualmente é professor titular do Departamento de História Moderna da Universidade Autónoma de Madrid, investiga temas como a Liga Católica [nota 1] e a Guerra Turca [nota 2], e prepara-se para lançar uma monografia que abordará a Batalha Naval de Lepanto [nota 3] e as suas consequências para a História da Europa e do Ocidente. Das obras do autor importa destacar: Filipe II y el gobierno de Italia (1998); Diplomacia y relaciones exteriores en la Edad Moderna (2000); La Espanhã de Don Quijote: Un viaje al Siglo de Oro; e Gattinara: Carlos V y el sueño del Império (2005). (Rivero Rodríguez, 2005).

O capítulo supra identificado e agora alvo de análise está muito bem fundamentado, dá ideia de ser uma síntese pela quantidade de obras e autores citados, a escrita é prática e conclusiva, não é um texto de leitura de massas pela tecnicidade que tem impressa, é um texto classificável como académico, e do ponto de vista formal está dividido em quatro partes, que são [nota 4]:
1. La invención de la diplomacia, pág. 163 – 165;
2. El sistema europeo en el siglo XVIII, pág. 165 – 169;
3. Equilibrio y guerras de sucesión, pág. 169 – 174;
4. La «revolución diplomática» y la «reversión de alianzas», pág. 174 – 184;


Rivero Rodriguez inicia o capítulo número sete respondendo de forma clara e inequívoca ao título que deu ao próprio capítulo, com as seguintes palavras: “El siglo XVIII es el siglo de la diplomacia”. A esta parte, justifica e fundamenta as suas palavras, com recurso a três fortes argumentos: 1) diz ser inquestionável a existência do Direito Internacional e da Imunidade Diplomática na Corte da Rússia, mesmo quando esta é descrita por Claude de Rulhière como “ «a corte más bárbara de Europa» ”; 2) cita Bynkershoeck e aponta factores como a extraterritorialidade das embaixadas, a imunidade dos cidadãos com responsabilidades diplomáticas, a inviolabilidade do correio pessoal e profissional dos chamados «homens do estado», e o respeito pela vida diplomática. Explica que as normas e os códigos impostas a estes «homens do estado» tornaram a Diplomacia um corpo do Direito; normas que diz terem sido aplicadas de forma gradual para facilitar a negociação entre potências no século XVII; 3) fundamenta-se em Burlamaqui para introduzir alguns aspectos menos positivos na Diplomacia, não deixando de evidenciar a existência de uma máquina diplomática a funcionar devidamente, que, no entanto, podia ser usada de forma aventureira e inconsciente, podendo assim colocar em causa a honra e os interesses da soberania que representavam. Considera que um diplomata em missão oficial deveria ser responsabilizado pelos seus actos e pelos actos dos seus subordinados, e que a culpa nunca deveria recair sobre a nação a que esses pertencessem. Não obstante, o autor está consciente que o acréscimo de normas e regulamentos nas vidas dos diplomatas não acompanhavam a sua formação, uma formação que considerava ser precária e insuficiente. Dá como exemplo o caso do embaixador polaco Poniatowski, “apanhado” em flagrante delito pelo Czar Pedro III, onde tiveram de intervir as duas potências, ficando a nação infractora numa posição delicada perante a sua congénere lesada. (Rivero Rodríguez, 2000:161-163).

Após esta primeira introdução/contextualização, muito esclarecedora e sintética do que era a diplomacia, como surgiu, os problemas que encontrou, as suas condicionantes e valências, o autor parte para o particular e aborda o que chama, «a invenção da diplomacia», entre as páginas 163 – 165 (parte 1).

Com fundamento nas obras de Abraham de Wicquefort e de Rousseau de Chamoy, o autor começa por dizer que o trabalho dos embaixadores carecia de formação prévia, de conhecimentos, mas não constituía matéria para uma nova profissão (ofício), já que os embaixadores eram considerados cidadãos com uma vida política activa a quem eram delegados certos poderes de representação do Estado. Eram procuradores designados por um soberano, para o ajudarem nas suas tarefas. Esta visão redutiva dos agentes diplomáticos, por força de uma ainda incipiente complexidade das relações externas das nações, fazia com que a formação ministrada aos que detinham o cargo de embaixadores era uma formação geral, de conteúdos políticos, semelhante à que todos os estadistas recebiam para o desempenho das suas funções.

No decorrer do final do século XVII e inicio do Século XVIII perfilou-se tendencialmente a necessidade de evidenciar as ciências diplomáticas, tornando a diplomacia uma profissão separada da politica. Mas, apesar da reconhecida funcionalidade das embaixadas, ainda eram raras as delegações permanentes nos finais do século XVII, e só nas principais capitais europeias, como Roma, Madrid, Londres ou Paris, estava como que adquirido o estatuto de imunidade dos diplomatas, das suas residências e dos seus subordinados.

A generalização da diplomacia e a sua transformação efectiva, começou em meados do século XVIII, com os embaixadores a formarem um corpo especial, uma sociedade internacional respeitada, com uma cultura social própria, e com uma língua, a francesa. Segundo Bély, terá sido em França, em 1791, que a designação de diplomacia adquiriu o significado que ainda hoje tem. Segundo Rivero Rodríguez, a evolução da diplomacia beneficiou da complexidade da política externa de Luís XIV, consubstanciando a reforma do exército de Louvois, a reforma da economia de Colbert, e a criação da Academia Política, em 1712, pelo marquês de Trocy, sobrinho de Colbert, com a finalidade de formar diplomatas, desde os cargos mais simples aos cargos mais complexos, que fossem necessários para o funcionamento das embaixadas.

Este incremento na evolução da diplomacia que o autor atribui a Luís XIV não veio sortir o efeito pretendido e necessário á evolução da carreira profissional dos diplomatas. Para isto terá contribuído a agitação dos nobres franceses que tinham interesse nos cargos militares, administrativos e governativos, e consideravam que as embaixadas tinham funções transitórias, acções pontuais com um determinado fim, o chamado «estado negociador», que não se enquadravam com a estrutura dos restantes profissões públicas francesas da época.

François de Calliérs que tinha trabalhado com Trocy e exercido funções diplomáticas ao serviço de Luís XIV, em 1716, apoiou a constituição de um corpo profissional e uma carreira diplomática. Várias vozes se seguiram pressionando nesse sentido, por exemplo Antoine Pecquet (1737), até que em 1752 se criou a École Diplomatique de Estrasburgo, onde estudaria os mais altos segmentos da elite europeia.

Os diplomatas tornaram-se cada vez mais especializados, as relações externas tornaram-se mais complexas, a diplomacia deixou de ser desempenhada por todos e passou a ser desempenhada somente por técnicos especializados, transformou-se num grupo circunscrito, uma elite com poder, responsável pelas negociações da guerra, do comércio externo e da diplomacia, do país que representavam.

Na segunda parte, o autor aborda o «sistema europeu no século XVIII», nas páginas 165 – 169 (parte 2). De forma muito breve, faz referência às rivalidades religiosas, dinásticas, territoriais e comerciais, que em toda a Europa se viveram no século XVII, nomeadamente, a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), parcialmente solucionada pela Paz de Vestefália, a Guerra Civil em França que se verificou após 1648, mais conhecida pela Fronda, e a revogação do Édito de Nantes pelo Édito de Fontainebleau, por Luís XIV, impondo a unidade católica à força.

O autor escreve que “ en el siglo XVIII (…), Europa volvió a reconocerse como un espacio normativo, un marco de civilización singular” (Rivero Rodríguez, 2000:165), e fundamenta-se nas obras de Salvador Mañer (1734) e Emer de Vattel (1758), que consideram que a Europa, no decorrer do século XVIII, representava um sistema político e um corpo bem articulado, que permitia o equilíbrio entre as forças que o integravam, no sentido da representação externa das nações na defesa dos seus interesses. Cita Voltaire [nota 5] para dizer que Luís XIV foi pioneiro na implementação e orientação do sistema das relações internacionais porque introduziu o primado da razão, fazendo com que as potências europeias trabalhassem sobre objectivos políticos concretos e não com base em princípios religiosos, que ele combateu toda a sua vida por os considerar irracionais.

Faz referência à obra de David Hume (1752), que esmiúça o equilíbrio do poder político que integrava o xadrez europeu no século XVIII, e particulariza o caso da Inglaterra, porque do ponto de vista empírico considerava que a única limitação ao poder e aos interesses de uma nação era o poder e os interesses de outra nação. Logo o equilíbrio era uma utopia, tal como o defende Georges Rudé (1988), na medida em que era expectável uma confrontação económica, resultado do aumento do comércio e do concomitante crescimento dos comércios coloniais, em prol dos interesses individuais.
Conclui que o fundamento para o equilíbrio, passou pelo desaparecimento da moralidade das guerras, que deixaram de ser qualificadas como justas ou injustas, e assim as nações não implicados directamente numa guerra não tinham que tomar qualquer partido, resultando daí o incremento da neutralidade, num contexto progressista que foi o período das Luzes [nota 6].

Rivero Rodríguez refere que apesar do optimismo de alguns sectores da sociedade, tais como os «homens do estado», os eruditos, ou os mediáticos, este equilíbrio não foi linear e contou com a oposição de alguns factores, que eram inerentes à própria constituição do sistema, já que o sistema era composto por potências de diferentes culturas, realidades e dimensões, que propiciava uma certa hierarquia entre nações, e dentro destas nos cargos diplomáticos a desempenhar. Este facto leva o autor a dizer: “ (…) ele status y el reconocimiento del mismo desempeñaban un papel tan importante como el equilibrio, y ello conducia a decisiones no marcadas precisamente por la racionalidad”. (Rivero Rodríguez, 2000:166).

O autor dedica a parte final da segunda parte do capítulo às fronteiras territoriais, à organização do espaço físico, à organização interna das nações e a sua articulação dentro do sistema europeu, sendo que o território imperial variava de nação para nação, e as suas fronteiras eram alvo de constantes desrespeitos.

As fronteiras territoriais no século XVIII eram tidas como áreas de desordem, de desrespeito, de desregulação, eram obscuras e fraudulentas, porque eram ineficientes no controlo fiscal, permitiam o contrabando, limitavam as receitas dos cofres reais, e falhavam na articulação e controle que as medidas monopolistas e proteccionistas tinham de ter em relação às entradas e saídas de mercadorias no país.

Para fazer face a esta questão, a coroa francesa entre 1769 e 1786 procedeu a uma série de acordos e tratados com os principados da fronteira do rio Reno, da Holanda até à Suíça, para que fosse mais fácil cobrar os impostos através de fronteiras naturais que servissem de obstáculos aos contrabandistas.

O plano não teve o sucesso desejado porque implicava a deslocação e movimentação de pessoas, de comunidades inteiras, que não aceitaram de bom agrado esta situação, protestaram e levaram a questão aos tribunais e aos parlamentos franceses. Cita Noël, investigador que estudou o redesenhamento da fronteira franco-alemã, diz que as comunidades tinham receio de perder liberdades e privilégios, questionavam estas acções à luz da Paz de Ryswick [nota 7], e objectavam com questões históricas, no âmbito das suas relações com o espaço onde sempre tinham habitado. Não obstante, a coroa francesa foi lentamente fazendo alterações às suas fronteiras, e conseguiu organizar administrativamente o seu território, afirmando o domínio e a autoridade do estado dentro dos seus limites territoriais, dentro das fronteiras.

A terceira parte dá continuidade à anterior, e trabalha «o equilíbrio e as guerras de sucessão», entre as páginas 169-174. O autor começa por evidenciar as fragilidades das políticas externas, explicando que o poder de decretar a paz e a guerra estava nas mãos dos soberanos, e que na Inglaterra esse chega a ser entregue aos amigos do rei.

Rivero Rodríguez deixa a ideia que Jorge I, que foi Rei da Grã-Bretanha e Irlanda e Príncipe de Hanôver, e o seu filho e sucessor Jorge II, quando eram chamados a projectar a política externa, demonstravam mais interesse no exercício de funções trabalhando para os Hanoverianos, do que trabalhando em representação dos britânicos.

De facto, Jorge I não tinha um inglês fluente, utilizou sempre o seu alemão nativo, e por isto expôs-se à crítica perante os seus súbditos britânicos. Durante o seu reinado, o poder da monarquia diminuiu, desenvolveu-se o moderno sistema de governo por Gabinete, e nos últimos anos do seu reinado, o poder esteve nas mãos do seu Primeiro-ministro, Sir Robert Walpole. Esta ingerência da sociedade civil e parlamentar britânica foi herdada pelo seu filho, Jorge II, e segundo o autor, está patente nas críticas dos parlamentares em relação ao Tratado de Aquisgrán [nota 8], em 1748, que levou Jorge II a lembrar ao parlamento britânico que a política exterior era da responsabilidade do rei, e que a competência do parlamento era a de consultar os resultados, sem qualquer outra interveniência.

A Paz de Utrecht (conjunto de tratados entre 1713-1715) que colocou fim à Guerra de Sucessão Espanhola, e a Paz de Rastadt (complementou da Paz de Utrecht), assinada entre França e Áustria, em 1714, seria, aos olhos dos britânicos, o equilíbrio político que o enredo das relações entre nações europeias precisava para se estabilizar. Porém, depois de Utrecht não se verificou equilíbrio mas sim instabilidade e guerra, a começar por Filipe V de Espanha, que apesar de ter saído vitorioso e permanecido como rei, teve de fazer cedências à Inglaterra e aos Habsburgos austríacos, o que leva o autor a concluir que o ritmo do equilibro de poder (“balance of power”) era flexível e relativo, dependia da conjuntura e vivia numa precariedade constante. (Rivero Rodríguez, 2000:170).

Convêm referir que a fusão da monarquia francesa com a monarquia espanhola seria algo negativo para as restantes potências europeias, pelo poder e ameaça que representava; elas sabiam disso, por isso sempre o tentaram evitar a todo custo. Pelos traços de parentesco era de temer que Filipe V de Espanha seguisse incondicionalmente as políticas de Luís XIV, o que somente aconteceu parcialmente no inicio do seu reinado. Posteriormente, Filipe V revelou-se maduro, com objectivos, decidido, e com ideias para a Espanha que não passavam por prestar vassalagem à França. Aliás, procedeu a reformas profundas na Espanha e tentou recuperar muitos domínios perdidos no âmbito do processo de Paz de Utrecht, nomeadamente na Itália. Esta postura de Filipe V terá trazido dissabores a Luís XIV, dissabores que ele nunca teria equacionado.

Para Rivero Rodríguez, em linha de pensamento com Choiseul, secretário de Estado de Luís XV, enquanto se elaborassem tratados de paz que invocassem princípios jurídicos para mudar o poder de territórios, desnaturalizando as suas populações de forma pouco idónea, perpetrava-se o desequilíbrio do poder e subjugação dos mais frágeis. Para estes eruditos o poder não pode se mede com fita métrica, era irracional fazê-lo, porque só o facto de se pensar assim deprecia os tratados de paz: “un soberano podia renunciar a título particular a un derecho, pêro no la casa, y era obrigación de sus miembros preservar y aumentar su patrimonio”. (Rivero Rodríguez, 2000:170). Consideram o princípio do sistema de relações europeu falível, mal estruturado, e defendem que as falhas da Paz de Utrecht, que consideram um acordo pouco definitivo e muito provisório, propiciaram a Guerra de Sucessão Polaca.

De facto, a leitura do texto permite perceber que a Europa, nos séculos XVII e XVIII, principalmente após a Paz de Vestefália, procurava o equilíbrio, o que segundo o Professor Paul Michael Kennedy [nota 9], isto a que designavam de equilíbrio, não eram mais que um sistema muito mais indefinido de alianças instáveis e de curto duração; os países actuavam como inimigos numa guerra e logo a seguir actuavam como aliados em outra guerra.

Num sistema desta natureza o pensamento de Choiseul é de todo verdadeiro. Os povos serviam como peões de um grande jogo de xadrez, movidos pelos actos dos indivíduos que os governavam e que faziam e desfaziam alianças conforme as circunstâncias diplomáticas.

Como militar não poderia de deixar de fazer referência ao Sr. General Carl von Clausewitz. O Sr. General defende que a guerra não é só um acto político, é também o prolongamento das relações políticas. Para este distinto militar, que deu um grande contributo ao desenvolvimento da teoria da guerra e da estratégia militar, é evidente que a consubstanciação dos interesses políticos transforma a guerra num instrumento da política, através da troca da espada pela pena. (Paret, 2003).

O conceito “balance of power”, que Choiseul considerou uma falácia, de facto, não conseguiu a estabilidade desejada no seio europeu, e Rivero Rodríguez enumera vários conflitos que se efectivaram, e que resumem a insuficiência do conceito: em 1733, a Guerra de Sucessão Polaca (já abordada anteriormente); a Paz de Viena, em 1738, absorvida em fundamentos de equilíbrio, não conseguiu satisfazer o princípio de equilíbrio e deixou a porta aberta para novos expectáveis confrontos; a rivalidade entre Habsburgos e Bourbons manteve-se; a Guerra do Asiento, em 1739, devido aos interesses mercantilistas e coloniais entre espanhóis e ingleses; despoletaria a Guerra da Sucessão Austríaca, em 1742, que teve o ponto alto dos conflitos na batalha naval de Cartagena de Índias, em 1741, onde a frota inglesa sofreu uma enorme derrota, que determinaria a sua derrota e o retorno ao statu quo anterior à guerra; o insucesso da Paz de Aquisgrán, que não conseguiu diluir os conflitos latentes, e facilitou a ascensão da Prússia, onde Federico II, à semelhança de outros soberanos, observava o património da coroa como uma herança de família, que devia preservar e aumentar, através de novas aquisições ou guerras.

Terminando a análise à terceira parte, com os olhos postos no trabalho de Rudé (1988:22), verifica-se uma continuidade na mesma linha de pensamento: "a monarquia absolutista continuou a ser modelo típico de governo, as guerras eram ainda motivadas por razões dinásticas tradicionais; e na medida em que persistiam as ideias feudais relativas à posse da terra, os governantes eram levados a considerar a expansão dos seus territórios, à semelhança do que aconteceu em séculos anteriores, como se tratasse de novas aquisições de grandes propriedades. No novo século (XVIII), assistimos à sobrevivência destes conceitos numa série de guerras de sucessão pelos domínios espanhóis, Polónia, Silésia e Baviera; nas preocupações da monarquia francesa (…) em torno do seu Pacto de Família com os Bourbons e os Habsburgos."

Concluindo, neste ambiente, onde a paz se reduzia a uma simples ausência de guerra, era normal que alguns soberanos europeus procurassem elevar as respectivas monarquias à categoria de polícias da Europa, procurando assumir-se como os árbitros supremos dos confrontos, tirando dividendo dessa posição.

A quarta e última parte a analisar aborda «a revolução diplomática e a reversão das alianças», entre as páginas 174 – 184.

As potências e os seus os soberanos, no decorrer da primeira metade do século XVIII, viviam um panorama muito complexo, muito tenso, faziam um controlo apertado dos restantes, estavam expectantes, cada vez mais apetrechados, cada vez com mais força, e esperavam racionalmente a oportunidade certa para se superiorizar e colocar o seu “poder em campo”, como diz Frederico II, citado pelo autor: "bastaba com aprovechar la ocasión, y la única sunrazón era no saber aprovecharla o errar en los cálculos y perder la guerra”. (Rivero Rodríguez, 2000:174).

Este ambiente, segundo o autor, favoreceu e desenvolveu as técnicas e estratégias diplomáticas, e propiciou a designada «reversão das alianças», em meados do século XVIII. Continuando na linha de raciocínio do autor, toda esta situação foi possibilitada através da Paz de Aquisgrán, beneficiadora dos mais audazes. Não obstante, pode-se dizer que equilíbrio europeu é colocado em causa ao longo da primeira metade do século XVIII, nas sucessivas guerras que opõem os Bourbons de França aos Habsburgos austríacos. No fim do processo, se a França resiste e até consegue garantir a ocupação do trono de Madrid por um descendente de Luís XIV, eis que o Império dos Habsburgos austríacos fica obrigado a deslocar a sua influência para o Sul e Leste da Europa, enquanto os ingleses alargam os seus domínios ultramarinos, principalmente à custa das possessões francesas e espanholas.

A calmaria que se viveu a seguir á Paz de Aquisgrán, e que permitiu significativos avanços diplomáticos, resulta do designado, in statu quo ante bellum, de um reset que repôs as condições que se verificavam antes da guerra, ou seja, não resolveu as rivalidade entre a França e a Inglaterra na Índia e na América do Norte, o que resultou na Guerra dos Sete Anos, entre 1756 – 1763. Para agravar a situação, a Paz de Aquisgrán ainda beneficiou as potências com mais poder, como é o caso de impor relações comercias com mais privilégios para a Inglaterra, e o facto de ter cedido e efectivado a conquista da Silésia, uma região do domínio austríaco, por parte do Rei da Prússia, Frederico II. Assim, como é óbvio, as potências não ficaram crispadas e não arranjaram conflituosidades, resultando num período de relativa acalmia política e diplomática no espaço europeu. Não obstante, as potências sabiam que a não existência de hostilidades era pontual e que os problemas de fundo continuavam por resolver, protegendo-se com múltiplas alianças de forma a garantir a segurança das suas áreas territoriais e as áreas territoriais sobre os seus domínios, no pressuposto de que eram inevitáveis novos conflitos.

Estavam reunidas as condições para a diplomacia reflorescer, e assim foi. Entre os muitos acordos e alianças realizados entre potências, regista-se a actuação da Prússia, que no seguimento do referido anteriormente, elaborou muitos esquemas, alianças e acordos, com um duplo objectivo: para a sua protecção e para evitar que a Áustria lhe lançasse uma ofensiva para recuperar Silésia, território que aliou de forma unilateral.

Seguindo a linha da Prússia, vai se verificar um acordo importante com a Inglaterra, de mútuo interesse, com o qual não propunham amizade mas sim neutralidade. A Inglaterra queria salvaguardar Hannover mas não queria despender de muita atenção para isso, tinha de dar atenção a outras possessões, nomeadamente às localizadas no Norte da América, onde existiam confrontos entre colonos franceses e ingleses, fazendo antever uma guerra. A Prússia precisava da influência de Inglaterra junto da Rússia. Com o objectivo comum de impedir a passagem de qualquer potência estrangeira pela Alemanha, estas duas potências assinaram o Tratado de Westminster, em 1756.

O secretismo que as negociações entre a Prússia e a Inglaterra não anteviam facilidades aos seus opositores e, de facto, a Inglaterra tinha a intenção de se apropriar do império dos Franceses, politica que adoptou depois de selada a paz entre a Casa de Habsburgo, da Áustria, e os Bourbon espanhóis, de 1752. A Inglaterra disponha de uma superioridade económica, estratégica e militar, estava convencida que sairia vitoriosa, e sem qualquer aviso prévio, decretou na primavera de 1756, o aprisionamento de todos os navios franceses fundeados em portos britânicos e em movimentação em alto mar, limitando assim a França, incapacitando o acesso desta às suas colónias.

A Prússia aliada á Inglaterra atacou potencias suas inimigas. Por toda a Europa se fizerem uniões, que resultaram na Guerra dos Sete Anos, a mais penalizadora do século XVIII. Em Junho de 1757, as forças anglo-prusianas sofreram perdas significativas. Em 1760, os britânicos conquistam Montreal (Canada) e quase que conquistam Pondichery (Índia), levando os Borbons Franceses a solicitar ajuda aos espanhóis, o que só serviu para colocar em perigo as possessões espanholas na América. Em 1761, os ingleses apoderam-se da Florida e mais tarde das Filipinas. Em território europeu a guerra tomou outro sentido. A Prússia contou com algumas derrotas e com algumas vitórias importantes, tal como a de Zorndorf, em Agosto de 1758, e após a morte de Catarina II, a Grande, o seu sucessor, Pedro III, admirador do soberano prussiano, abandonou a guerra e assinou um compromisso de paz entre as duas potências, a Paz Austro-Prusiana de Hubertusburg.

Em 10 de Fevereiro de 1763, entre as potências ocidentais firmou-se a Paz de Paris, uma paz penalizante para os franceses que perderam quase todo o seu império colonial. No Leste da Europa depois da guerra, a Casa de Habsburgo, a Prússia e a Rússia afirmaram-se como potências dominantes, nesta região. Porém, o receio de novos conflitos era muito real, e estas três potências definiram entre si um sistema de partilha «sistema de coparticipación», para que em conjunto, sem atritos, gerissem os destinos da Europa Ocidental, o que veio a acontecer a 5 de Agosto de 1772, com a fragmentação e distribuição pelas três potências da Polónia: José II ficou com a Galiza; Catarina, a Grande, recebeu a Lituânia; e Frederico da Prússia ficou com Vistula valley, à excepção de Danzig. (Rivero Rodríguez, 2000:179).

Em 1776, os colonos da América do Norte revoltam-se contra a governação britânica, e em 1778, a coroa francesa declara o seu apoio aos colonos britânicos, declarando guerra à Inglaterra, seguindo-se a Espanha e a Holanda. Inglaterra não encontrou alianças e os seus adversários aproveitaram o momento para se vingarem das derrotas sofridas na Guerra dos Sete Anos. O autor relembra que, mesmo países que não tiveram uma intervenção directa nessa guerra, como Holanda e Dinamarca, tinham contas a ajustar com os ingleses porque a sua frota tinha sido atacada pelos britânicos no contexto dessa guerra só porque tinham relações comerciais com a França. A supremacia britânica sofreu um duro golpe com esta guerra. A França recuperou o equilíbrio estratégico no cenário internacional e viu o seu esforço de guerra ser recompensado em conjunto com o espanhol, mais pelo prazer da vitória do que pelas conquistas territoriais, que foram poucas.

Em 3 de Setembro de 1783, a Inglaterra dá a independência aos Estados Unidos da América, devolve Menorca e Florida à Espanha, e Tobago e Senegal à França.

Em síntese, Rivero Rodríguez, após esta longa fundamentação, atribui ao período entre, a invasão forçada da Silésia, por parte de Frederico II, em 1741, até ao momento em que a França declarou guerra à Inglaterra, em auxilio dos rebeldes Norte Americanos, em 1778, a base que suporta o conceito de «revolução diplomática», na medida em que foram modificados os princípios que regulamentavam as relações externas. O autor deixa ainda uma crítica (sublime) ao dizer que é errado circunscrever a «revolução diplomática» à chamada «reversão das alianças» de 1756. (Rivero Rodríguez, 2000:181).

A linha de pensamento do autor parece evidente, na medida em que a partir de 1756, dá-se uma importante inversão no processo de alianças da balança da Europa. Quando o Império dos Habsburgos se alia à França e a Prússia, assume-se como a espada continental dos ingleses, delineando-se o perfil dos modelos de Estado do século XVIII, onde os anciens régimes se enredam nas teias de um despotismo esclarecido que, em nome da soberania, edificam um modelo imperialista de construção do político. De facto, a Guerra dos Sete Anos é a demonstração viva do novo estado de coisas, com a França, o Império dos Habsburgos e a Rússia a assumirem-se contra a Prússia, a Suécia e a Grã-Bretanha.

Partindo dos conhecimentos existentes na época, principalmente os fornecidos pelas ciências naturais para a compreensão da natureza, foi-se veiculando ideia que era possível perceber os princípios que regiam as relações externas, possibilitando a criação científica de um modelo que pudesse ser estudado e manipulado. Pensava-se que se o modelo funcionava para as pessoas, tinha obrigatoriamente de funcionar para o estudo das relações externas. Esta abordagem originou a chamada «diplomacia de gabinete», também designada de «diplomacia clássica», que considerava a Europa um sistema formado por Estados que se relacionavam da mesma forma que se relacionam os indivíduos em sociedade (Rivero Rodríguez, 2000:182).

O desenvolvimento da diplomacia clássica levou à despersonalização da política externa. As directivas emanadas dos gabinetes dos ministros do estado, muito teóricos, que procuravam o equilíbrio do espaço, quando consubstanciavam a despersonalização ao projecto das políticas externas, levava ao que Bielfeld designou de, «troca de homens» (cambalache de hombres), ou seja, fragmentação de territórios, separação das suas gentes, desrespeito pela sua cultura e pelos seus costumes, invocando, como argumento, o supremo interesse e protecção da colectividade. (Rivero Rodríguez, 2000:182-183).

Com o passar do tempo, desenvolveu-se o princípio da segurança colectiva «seguridad colectiva» e o princípio do sistema de partilha «sistema de coparticipación», já antes referido, surgindo daí a noção de tutela, que consistia em meios de protecção, defesa e amparo que as potências poderosas colocavam ao dispor das potências mais débeis, com base nos seus interesses internos e estratégicos. No fundo, este sistema faz lembrar as potencias satélites que existiam durante a Guerra Fria, que recebiam influencias e auxiliavam, ou os Estados Unidos da América ou a União Soviética, na medida em que a noção de tutela implicava o cumprimento de diversas normas, e ainda o relacionamento comercial e político, que fosse de encontro do interesse do protector e do protegido (no plano prático ia quase sempre ao encontro dos interesses do protector e não do protegido). (Rivero Rodríguez, 2000:183).

Este sistema de protecção, com vista ao equilíbrio, já não era novo principalmente para Portugal, que desde o Tratado de Methuen tinha acordos estratégicos, comerciais, políticos, e de segurança, com a Inglaterra, o que tornava Portugal uma potencia tutelada.

O final do século XVIII apresenta-se calma, com preocupações de equilíbrio por parte das nações, que pareciam procurar a paz, reduzindo assim a conflituosidade entre nações.

A Tripla Aliança entre Jorge III, de Inglaterra, Guilherme V, da Holanda, e Frederico Guilherme II, da Prússia, pode ser, segundo o autor, a razão desta harmonia relativa no contexto europeu, que fazia o equilíbrio de forças com a Inglaterra (também esta disponibilizou o seu apoio ao Império Otomano). A concordância extraterritorial entre nações verifica-se no acordo para a primeira partilha da Polónia [nota 10] entre a Prússia, a Áustria e a Rússia, e o optimismo de clima de paz e prosperidade encontra-se em Inglaterra, que como potência com responsabilidades na estabilidade europeia, através do seu poder económico, militar e capacidade de influencia, considerou que as tarefas da sua Royal Navy já não tinham razão de existir, e reduziu a sua armada e os gastos militares com a guerra. Não obstante, a partir de 1783, a França começou a ter dificuldades internas que forçaram o seu soberano a adoptar uma politica mais agressiva, no sentido de controlar a crispação.

Em 21 de Janeiro de 1793, o Rei Luís XVI de França é executado, e os exércitos franceses tomaram posse da Sabóia e dos Países Baixos austríacos. Apesar da situação francesa transcender uma simples conflituosidade interna, e demonstrar ser uma clara revolução de ideias e valores, as potências europeias optaram por não intervir, considerando ser uma simples ingerência. Após a morte do soberano Luís XVI, a atitude dos soberanos europeus alterou-se em relação à França Revolucionária. A França apresentava conceitos diplomáticos na sua politica externa estranhos para a época, tais como a fraternidade dos povos «fraternidade de los pueblos», soberania nacional «soberania nacional», e o interesse e valorização do ser humano «interés de la humanidad»: conceitos que ficaram conhecidos mais tarde como Liberté, Egalité, Fraternité. (Rivero Rodríguez, 2000:184).

Há luz desta teoria, os exércitos franceses não conquistavam nem oprimiam, mas sim libertavam. Não tinham interesse em bens materiais, em equilíbrio entre nações, ou em Direito Internacional. O único interesse era exportar os seus ideais, os únicos correctos, e coloca-los ao serviço da humanidade. Isto representava o fim das relações externas e da diplomacia, tornava inútil o sistema em vigor, e transformava a frase de Vattel «Europa forma un sistema político y un cuerpo» numa utopia, ou como diz o autor, isso só existia numa política ficcionaria. (Rivero Rodríguez, 2000:184).


O autor finaliza dizendo que só quando os povos submetidos à designada libertação francesa se aperceberam que tinham sido alvo de uma conquista armada, e quando as nações absolutistas responderam de forma politica às acções revolucionárias, motivados por forças patrióticas e nacionalistas, é que o mundo dá um salto para uma nova dimensão, para um «sistema internacional». (Rivero Rodríguez, 2000:184).

Este sistema, que ainda vigora, resulta do ambiente que se cria entre as várias potências em conjunto com entidades internacionais, e de forma intrínseca representa uma hierarquização entre nações, baseada em capacidades políticas, militares e económicas.


Bibliografia

RIVERO RODRÍGUEZ, Manuel (2000), «El siglo de la “revolución diplomática, 1714-1794» in Diplomacia y relaciones exteriores en la Edad Moderna. De la cristandad al sistema europeo, 1453-1794, Editora Alianza, Madrid, pp. 161-184.

RIVERO RODRÍGUEZ, Manuel (2005), Gattinara: Carlos V y el sueño del Imperio, Edições Silex, Madrid.

PARET, Peter (Org.) (2003) «Clausewitz» in Construtores da Estratégia Moderna: de Maquiavel à Era Nuclear, Vol. I, Cap. VII, Edição Bibliex, Rio de Janeiro.

RUDÉ, Georges (1988), A Europa no Século XVIII, 1ª Edição, Edição Gradiva, Lisboa.


NOTAS:

[1]

Também designada de Sainte Ligue foi criada durante os conflitos franceses entre católicos e protestantes. É de origem antiprotestante e visava extinguir a heresia


[2]

Designa o conjunto de conflitos que opuseram as potências europeias (unidas na designada Liga Santa) ao Império Otomano, durante a segunda metade do século XVII. Marca o fim das invasões otomanas na Europa.

[3]

No dia 7 de Outubro de 1571, uma esquadra que se viria a chamar de Liga Santa, comandada por João de Áustria, venceu o Império Otomano, ao largo de Lepanto, na Grécia, marcando o fim da expansão islâmica no Mediterrâneo. A força foi reunida pelo Papa Pio V, visava impedir o domínio do Mediterrâneo pelos Turcos. Teve origem na invasão otomana da ilha do Chipre, então na posse de Veneza.


[4]

Para simplificar a análise o texto foi analisado de acordo com a própria estrutura do autor.


[5]

Voltaire foi uma figura do Iluminismo, apoiou a liberdade de expressão e a liberdade religiosa com ideias extremamente revolucionárias, combateu a intolerância religiosa e a intolerância de opinião.


[6]

Rivero Rodríguez cita Bynkershoek, que tem uma perspectiva oposta à de David Hume, e que refuta a lógica da obrigatoriedade de uma potência ter que ajudar outra quando essa fosse atacada de forma bélica, e ainda diz que era possível as potências neutras desenvolverem contactos com potências beligerantes, ou seja, defende a neutralidade como algo efectivo e não abstracto.
Do ponto de vista de Rivero Rodríguez, o princípio de neutralidade é dotado de alguma complexidade e só se verificou quando os países neutros tinham uma posição forte e poder para defender as suas convicções, justificando-se com a protecção dos navios mercantes por parte do soberano da Suécia durante a guerra anglo-francesa, em 1690.


[7]

A Paz de Ryswick, que teve como protagonistas Guilherme III de Inglaterra e Luís XIV de França, foi assinada em 1697 e colocou fim á Guerra dos Noventa Anos. Com este tratado procedeu-se a inúmeros acertos territoriais entre as potências envolvidas na guerra. A título de exemplo, a França recuperou Estrasburgo, recebeu de Espanha a parte ocidental da ilha de Santo Domingo (actual Haiti), Pondicherry e Nova Escócia, mas teve de desocupar o ducado de Lorena e entregou ao Sacro Império Romano Germânico, Friburgo em Brisgóvia, Breisach e Philippsburg. Já a Espanha recuperou a Catalunha e as fortalezas de Mons, Luxemburgo e Courtrai. Os populares ao reavivarem a Paz de Ryswick, abriram outra ferida, de forma implícita, o Tratado de Nimegue, assinado em 1678.

[8]

Tratado que visava por fim a várias guerras: a Guerra de Sucessão do Império Austríaco entre as principais potências europeias; a Guerra do Segundo Pacto da Família, entre 1741-1748, onde por ocasião do término do conflito anterior o rei espanhol tentou recuperar os ducados de Parma e Piacenza, bem como as possessões italianas de Milão que tinha perdido aquando do Tratado de Utrecht; e a Guerra do Asiente onde se digladiaram as frotas e as tropas colónias da Inglaterra e da Espanha (onde a França deu um auxilio e enviou tropas) na área do Caribe, por causa do comercio americano.

[9]

Professor Universitário de História. Informação consultada em http://www.yale.edu/history/faculty/kennedy.html, acedida em 25 de Abril de 2010.

[10]

A Polónia ainda sofreu a terceira divisão, em 1795, fazendo com que quase tenha desaparecido do mapa europeu.


19/04/10

Comentário ao texto: A conferência de Bandung e a missão de Portugal - conferência proferida na sessão de encerramento da «Semana do Ultramar»

MOREIRA, Adriano (1955), A conferência de Bandung e a missão de Portugal - conferência proferida na sessão de encerramento da «Semana do Ultramar», Editorial Ultramar, Lisboa.

“A conferência Afro-asiática discutiu os problemas dos povos dependentes, do colonialismo e dos males resultantes da submissão dos povos ao jugo do estrangeiro, à sua dominação e à sua exploração por este último. A Conferência está de acordo: 1) em declarar que o colonialismo, em todas as suas manifestações, é um mal a que deve ser posto fim imediatamente; 2) em declarar que a questão dos povos submetidos ao jugo do estrangeiro, ao seu domínio e à sua exploração constitui uma negação dos direitos fundamentais do homem, é contrária à Carta das Nações Unidas e impede favorecer a paz e a cooperação mundiais; 3) em declarar que apoia a causa da libertação e independência desses povos; 4) e em apelar para as Potências interessadas para que elas concedam a liberdade e a independência a esses povos (…)”. (Freitas, 1976:348).


No âmbito da disciplina de História Contemporânea (séc. XX) foi solicitado um comentário de um texto do caderno de apoio à disciplina. O texto escolhido foi A conferência de Bandung e a missão de Portugal, da autoria de Adriano Moreira.

O autor, nascido nos anos xx, do século passado, teve um percurso académico de relevo; evidenciando-se se em áreas como advocacia, docência, sociologia e política (como deputado e politólogo). Destacou-se como Ministro do Ultramar durante o Estado Novo, e entre outras, escreveu a obra agora em análise que aborda a Conferência de Bandung.

Em termos de espaço e tempo, a Conferência de Bandung realizou-se na Cidade de Bandung, na Indonésia, entre 18 e 26 de Abril de 1955 e teve como principal impulsionador o primeiro-ministro da União Indiana, Jawaharlal Nehru, que o autor designa de “velho e ressentido adversário da presença da raça branca na África e na Ásia”. (Moreira, 1955:4). Foi um encontro pioneiro pela iniciativa, universalista na medida em que foram convidados a estar presentes todos os países do Extremo Oriente, Médio Oriente e África, reunindo na mesa das conversações representantes de vinte e nove estados asiáticos e africanos. Presidiu à cerimónia, Nehru, em conjunto com os primeiros-ministros Gamal Abdel Nasser do Egipto e Sukarno da Indonésia: este último ficaria conhecido por chamar a conferência de “Les Peuples muets du monde”. (Moreira, 1955, 1985).

Segundo Moreira (1955:23) reuniram-se na conferência “ (…) oito países anticomunistas (Etiópia, Iraque, Irão, Libéria, Paquistão, Filipinas, Sião, Turquia); oito países neutralistas (Afeganistão, Arábia Saudita, Egipto, Índia, Indonésia, Sudão, Síria, Iémen); onze países não alinhados (Birmânia, Comboja, Ceilão, Japão, Jordânia, Laos, Líbano, Líbia, Marrocos, Nepal e Tunísia); observadores cipriotas, algerianos, palestinos, e da Universidade Hebraica de Jerusalém”. Não participaram na conferência representantes de Israel, Coreia e África do Sul.

De forma sintética, os principais objectivos deste evento foram a oposição ao colonialismo e ao neocolonialismo, o respeito pelos direitos humanos; a adopção de medidas concretas para liquidar o colonialismo, a partilha de dificuldades e experiências na gestão da diplomacia com as grandes potências, a manutenção da sua dependência, a coordenação conjunta de posições no campo das relações internacionais, a vontade de emancipação e a recusa em serem usados como instrumentos da rivalidade das grandes potências, ou seja, queriam a neutralidade . Esta conferência tornou-se uma referência histórica, cujo comunicado final considerava como um dever dos países presentes ajudar os povos não independentes a ascender à soberania. Assinalou a entrada do Terceiro Mundo no cenário mundial e deu os primeiros passos na formação do movimento designado por, os Não-alinhados. (Balandier, 1956; Moreira, 1985).

Segundo José Manuel Vitorino, a ingerência do Ocidente na África e na Ásia tem antecedentes que remontam à década de 70 do século XIX. Até esse momento o interesse passava pela gestão e manutenção de pontos litorais onde se situavam os “centros de aprovisionamento, os pontos de referência, os portos fundamentais nas viagens para o Oriente”, e o tráfico negreiro, sendo que até este último a dada altura foi menosprezado. (Vitoriano, 1998:55).

Esta tendência menosprezista invertera-se com a constituição da African Association , com a descoberta de diamantes no Transval, de ouro no Rand e cobre na Rodésia, que alteraria o conceito económico que o Ocidente tinha de África, e com a necessidade de escoamento de excedentes produzidos. As principais potências coloniais eram também os países europeus mais industrializados. Assim, para evitar confrontos que colocassem em causa a estabilidade no cenário europeu, as várias potências mundialmente industrializadas decidiram encontrar-se em Berlim para alcançar uma solução. O encontro decorreu entre 15 de Novembro de 1884 e 26 de Fevereiro de 1885. As disposições finais do Acto Geral da Conferência foram assinadas pelos catorze estados em 26 de Fevereiro de 1885.Foi o maior acontecimento de política colonial internacional do século XIX e ficou conhecido por Conferência de Berlim. (Vitoriano, 1998).

A Conferência de Berlim efectivou “legalmente” a divisão de África entre as potencias coloniais mais poderosas, e assim impôs um penoso flagelo aos estados africanos. O reduzido conhecimento da realidade africana no momento da fragmentação de África e a visão eurocentrista dos estadistas e diplomatas, levou ao esquecimento de questões religiosas, étnicas, culturais e sociais, e valorizou questões como obstáculos físicos (bacias fluviais, rios, montanhas), fronteiras e a conjugação de paralelos e meridianos (latitudes com longitudes) em mapas de fiabilidade duvidosa. (Mello & Costa, 1995; Vitoriano, 1998; Fadul, 2005).

Tal como afirma Fadul (2005:261) “ (…) a colonização em África foi um “fenómeno de discriminação, dominação e exploração (…) que grosso modo, utilizou criteriosamente o conhecido lema «dividir para reinar» ” que conclui Vitoriano (1998:58), “ (…) advêm desse facto, por um lado, a separação de um mesmo povo do lado de duas ou mais fronteiras, por outro, aproximou povos que anteriormente mantinham relações bélicas”.

Depois da Primeira Guerra Mundial começaram a surgir movimentos anticolonialistas focalizados, e após a Segunda Guerra Mundial, por vicissitudes várias, nomeadamente devido à propaganda dos Aliados durante a Guerra, que diziam ser uma guerra em defesa da liberdade e da democracia, a que os colonizados também aspiravam, generalizou-se as reivindicações independentistas em toda a África e Ásia.
Esta conjuntura não era a melhor mas é o cerne para compreender e justificar a Conferência de Bandung, como marco histórico no Processo de Descolonização , através do qual um número significativo de países da África e Ásia iriam conseguir a sua independência política, movimento conhecido por descolonização.

O autor começa por afirmar que foram poucos os observadores ocidentais que imediatamente se aperceberam da real dimensão desta conferência, subestimando e desprezando possíveis consequências, tais como, alterações profundas e irreversíveis na estrutura da comunidade internacional, em virtude de considerarem estes povos como dependentes, conforme a seguinte citação: “estiveram longe de compreender o alcance deste voluntarismo, analistas tão ilustres como Berkowitz, quando não viam em Bandung mais do que uma nova Babel, reunião de povos dependentes económica, financeira e tecnicamente dos países ricos, esquecidos de que «Cristo não sabia nada de finanças» ”. (Moreira, 1985:24).

Os objectivos da Bandung eram: contrabalançar a influência americana através do entendimento dos neutros convocados; suprimir a influência das últimas potências colonislistas; afastar o Japão da órbita americana; chamar à razão dos factos a Turquia, Paquistão e Iraque, considerados os “neutros traidores”; alcançar a maioria na ONU para fazer membro a China comunista, e intervir no sentido de pacificar as relações internacionais desta com a Rússia; apoiar as reivindicações dos países africanos ainda no domínio da França, Inglaterra, Bélgica e Portugal; reconhecer os chefes dos movimentos anticolonialistas, e apoia-los com dinheiro e armas; e por fim pacificar o mundo árabe e solucionar a questão de Israel. (Moreira, 1955).
Todas as potências fizeram profissão de fé anticolonialista, mas não concordaram na questão de abranger, na condenação, a própria acção comunista. Ainda assim, o autor considera bem sucedida a conferência, pois reforçou a unidade e deslumbrava novos encontros, inclusive no próprio continente africano. Não obstante, o autor concede um conjunto de críticas à Conferência de Bandung.

Inicia o seu percurso criticando os fundamentos ideológicos de Bandung, lançando para debate duas questões: teve importância para condenar o sistema de satélites comunistas agentes de colonização, ou foi uma tentativa de reajustamento das potências africanas de acordo com o principio das nacionalidades. Introduz ainda outra possibilidade que comporta a coexistência das duas anteriores, e dá como exemplo a possibilidade de ter existido potências representadas em Bandung anticomunistas que ao mesmo tempo consideravam o princípio da nacionalidade. Contudo, apressa-se a desvalorizar esta hipótese, considerando que o princípio da nacionalidade “ (…) não podia ser o que estava em causa para os que pretendem expulsar de África a Inglaterra, a França, a Bélgica e Portugal” (Moreira, 1955:7), porque o principal factor de unidade dos povos que sofrem acção colonial é a fidelidade à soberania colonizadora. Reconhecendo que a divisão de África não teve em conta o principio das nacionalidades, com tudo o que isto acarreta - questões étnicas, sociais, religiosas e culturais - comprova a sua tese afirmando que se assim não fosse, a África negra teria de ter uma grande representação em Bandung, o que não aconteceu, e dá o exemplo da Indochina e da Libéria como oposto a Bandung, onde diz não ter existido condições de segurança que permitiam a presença de quem quisesse na conferência como aconteceu em Bandung.

O autor procede a uma densa e longa argumentação com base nos pontos elencados, concluindo que “quando em 19 de Abril de 1955 começaram os trabalhos, foi o homem branco que se sentou no banco dos réus” (Moreira, 1955:7), foi o brotar de um novo racismo, desta vez dos homens de cor contra os homens brancos, que tinha como fundamento primário a expulsão do homem branco da Ásia e África, “ (…) reservando estas para os exercícios coloniais de algumas potências recentemente admitidas na comunidade das nações”. (Moreira, 1955:9).

No início deste ensaio, foi referido que o autor classificou Nehru com um “velho e ressentido adversário da presença da raça branca na África e na Ásia”. Neste momento fornece o fundamento dessa acusação, dizendo que: “condenar todo e qualquer colonialismo, quer o colonialismo espaço-vital, quer o colonialismo missionário, é evidentemente uma posição racista contra os brancos, porque é justamente a presença dos brancos que terá de fazer-se terminar, para executar tal princípio”. (Moreira, 1955:10).
Esta concepção racista também é explicada no campo da doutrina da ONU , criada para sarar o conflito ideológico da II Guerra Mundial, mas enviesada à nascença porque assumia a doutrina defendida pelos vencedores e não por ambas as fracções em guerra. O que é compreensível. Ainda com base nesta concepção, o autor caracteriza o racismo de duas maneiras: numa primeira, considera positivo o princípio galvanizador, ainda que para causas discriminatórias, e numa segunda, verifica-se no estímulo à superioridade racial e cultural para congregação de esforços no sentido de destruir determinado povo, ou determinada cultura.

Moreira (1955) dá outra explicação para esta crescente espiral racista levada a cabo contra os brancos, fundamentada em propagandas, que muitas vezes não tinham fundamento lógico ou histórico mas eram altamente galvanizadoras de massas humanas contra os europeus. A título de comparação, ainda que de péssima qualidade, os sindicatos na contemporaneidade também são altamente galvanizadores, apelam à união invocando argumentos persuasivos, ainda que do ponto de vista lógico e racional não façam sentido ou até sejam absurdas as suas propostas.

Os “atropelos” que o Ocidente infringiu ao mundo na sua forma imperialista, desde a expansão ultramarina à adopção do colonialismo de espaço vital , a própria concepção de fragmentação de raças que durou durante o colonialismo, o extermínio dos Judeus, o extermínio de minorias inóspitas aos interesses ocidentais, etc., foram elementos depreciativos adoptados pelos povos emancipados na luta racista que se originou em Bandung contra os brancos. O autor cita vários exemplos de expressões e poemas que incitavam o ódio ao branco, por exemplo: “os europeus vieram para oprimir a casa de Mumbi. Eles vieram na nossa casa e permanentemente nos afrontam. Oh, quando voltarão eles para a Europa?”. (Moreira, 1955:13). A título de comparação, este poema que era recitado pelos nativos constitui um documento satírico semelhante ao Sermão do Padre António Vieira aos Peixes, uma critica social à forma como os índios eram tratados.

António de Sousa Lara, professor Catedrático do Instituto Superior de Ciências Sociais e Politicas (ISCSP), com imensa obra e reconhecimento científico, através de dedicatória ao povo de Timor numa obra dedicada ao tema agora em análise, considera que a Cimeira de Nice preparou o primeiro império do século XXI em termos de constituição, que evoluiu para a União Europeia. Isto remete-nos e faz-nos pensar sobre a vontade incessante do imperialismo ocidental, manifestada ainda em moldes mais diplomáticos mas ainda assim fiéis aos princípios de que quem deve controlar, decidir e ter maior poder são as “unidades políticas maiores”. (Lara, 2002:11). Não obstante, esta sublime critica ao desejo imperialista ocidental não implica uma divergência de atitudes face a Adriano Moreira (1955), considerando, “ (…) salvas raríssimas excepções, as colónias africanas constituíram regimes políticos autocráticos, que lançaram a perseguição política, designadamente aos antigos colonizadores, geraram a instabilidade a todos os níveis, destruíram as poucas estruturas políticas administrativas económicas legadas pelo colonialismo, deram campo à proliferação do crime da violência sistemática, provocaram a desorganização geral dos sistemas, não podendo ser esperada outra reacção que não a fuga dos quadros e dos capitais, gerando subsequentemente o caos nos serviços e na economia e, assim, fechando um círculo viciosos da instabilidade política”. (Lara, 2002:57).

Entre as páginas 14 e 16 o autor reforça o referido anteriormente, aludindo a uma concepção estigmatizada da colonização ocidental responsável pela insubordinação de alguns povos africanos, afirmando que a responsabilidade do apoio, incentivo e ajuda aos revoltosos foi da responsabilidade do “ (...) anti-colonialismo dominante nos círculos internacionais dos vencedores da última guerra”. (Moreira, 1955:14). Ao mesmo tempo, o autor explica que na altura faziam-se sentir vozes que consideravam a Europa incapaz de subsistir sem o imperialismo / colonialismo africano, ou seja, consideravam que o fim do colonialismo europeu seria o próprio fim da Europa, desintegrando-se através de conflitos, na medida em que faltaria aos europeus mercados de abastecimento de matérias-primas, e mercados aquisitivos de mercadorias / produtos de elevada componente tecnológica. No fundo consideravam ser o estrangulamento económico da Europa o fim do intercâmbio económico entre África e Europa. Ainda neste âmbito, o autor cita Anton Zischka e ilustra o pensamento que se fazia sentir na Europa central, que passava por considerar a “ (…) África como domínio indivisível da Europa, (…) base de sustento material para a Europa, fonte dos mais extraordinários recursos”; ideologia que reprova, admitindo que a solução passaria pelo diálogo, com a Europa a colaborar com África, a valorizar as suas riquezas, e não o oposto, já que era possível e viável o acesso a muitos recursos naturais e mão-de-obra abundante, infatigável e sem riscos de greves ou revoltas. (Moreira, 1955:15).
O autor condena a elaboração do Pacto do Atlântico Norte (Abril de 1950) e da Comunidade Europeia de Defesa (Outubro de 1950) porque não consideraram a “Euráfrica” nos seus estatutos, de forma clara e inequívoca, e diz que a Europa foi muito tímida e pouco directa na abordagem a África, que resultou numa aproximação pela via mais complicada; a das “conveniências”.

Na parte final do texto, entre as páginas 17 e 20, o autor resume o referido anteriormente. Começa por abordar a ONU, onde implicitamente se refere às dificuldades da admissão portuguesa (impostas pela antiga União Soviética e pelos países de Leste que reprovavam o colonialismo) e às pressões internas e externas anticolonialistas que sentia dentro da ONU, que forçaram o fim do colonialismo e favoreceram a Conferência de Bandung, que segundo o autor teria “ (…) recebeu a temível expressão da luta contra a raça braça”. (Moreira, 1955:17).

Em conformidade de pensamento com Moreira (1955) está Martins (1998:189-190), conforme citação seguinte: “ (…) desde 1956, o ano primeiro de Portugal na ONU na qualidade de membro de plenos direitos, teve início uma luta prolongada naquela instituição, como fora dela, contra os próceres do anticolonialismo. Nessa luta foi extremamente importante a utilização, por parte do Estado português, de argumentos de natureza histórico-juridica (…); a forma como as NU e a respectiva Carta o trataram jurídico-politicamente, foi possível, a Lisboa, desenvolver um sistema teórico-doutrinal capaz de limitar durante dezoito anos os eventuais efeitos daquilo que muitos designavam por espírito anticolonial da Carta assinada em S. Francisco no ano de 1945.”

Moreira (1955) considera que os responsáveis de Bandung se aproveitaram da movimentação comunista para actuarem, e considera que foi o início de uma massiva transformação de Estados africanos e asiáticos em satélites comunistas. Resultando ainda, por influências dos anteriores, de um revigoramento do islão em toda a África do Norte, de forma hostil e agressiva.
Face à evidente perda de poder ocidental nos territórios colonizados, o autor crítica e apelida de “ descabida, inútil e perigosa” a postura demitente que se padronizou entre os ocidentais, responsabilizando-a pela incapacidade de aproximar os povos colonizados das ideologias e projectos ocidentais, de ser culpada pela anarquia vivida por esses Estados (que em alguns casos chegou até aos dias de hoje conforme referido anteriormente pelas palavras do professor António de Sousa Lara), e pelo alastramento dos fenómenos de satélites. (Moreira, 1955:18).

Para o autor a solução passa pelo restabelecimento de um «colonialismo missionário» capaz de mostrar aos autóctones que é a única forma de vivência social, capaz de rivalizar com o sistema de satélites, dotado de uma mobilização ideológica que respeite o próximo, que acredite na igualdade do género humano, e que faça acreditar os povos na cultura em detrimento do termo depreciativo, as raças. Defende igualmente que os acordos internacionais devem ser fundamentados em princípios igualitários, profícuos, imparciais e idóneos, para que cada estado não interprete da forma que mais lhe interessa determinadas leis.

Moreira (1955:20) termina o seu texto com elevado sentido de patriotismo, com palavras de um simbolismo inquestionável para o reconhecimento da Nação Portuguesa na comunidade internacional, apelando à compreensão, à igualdade, ao pacifismo, à paz, à prosperidade, ao abandono da repressão militar ou policial como principal factor persuasão, destacando os portugueses, o povo português, como o mais indicado para suprir o ódio racial dos africanos em relação aos brancos, conforme a seguinte citação: “não conheço povo mais indicado que o português para, em face do estandarte negro do ódio racial que foi levantado em Bandung, levar de novo ao mundo uma mensagem de igualdade do género humano”.
No texto o autor acusa os povos emancipados que tinham sido alvo de colonialismo e o Homem de cor de serem incendiários e fomentarem a desordem e os conflitos raciais. Deve-se ter em linha de consideração que o autor estava fortemente convicto no caminho para a igualdade das nações, na convivência harmoniosa no seio de culturas, religiões e etnias diferentes, o que se verifica numa citação proveniente de outra obra do autor: “a nossa expansão fez-se sob o signo da igualdade do género humano, e temos orgulho na capacidade que revelámos para constituir um povo sem preconceitos de raça ou de religião”. (Moreira, 1961:6).

De forma conclusiva, a Descolonização de África e da Ásia está relacionada com a perda de poder e de influência da Europa para os Estados Unidos da América, muito por culpa dos flagelos impostos pelas duas Grandes Guerras Mundiais e pela crise de 1929, mais conhecida por “Crash de Nova York”. Outro aspecto determinante foi a «Guerra-fria» e a polarização entre EUA (capitalismo) e a URSS (socialismo) na medida em que cada uma das potências procurava na descolonização uma oportunidade de ampliar as suas influências políticas. Por fim, um último factor, o despertar do sentimento nacionalista, beneficiando da já referida diminuição de poder e influência da Europa (face à sua história) e da Carta da ONU, que segundo Mello (1995:290-291), “reconheceu o direito dos povos colonizados à autodeterminação”. Todos estes factores em conjunto com outros de menor evidência, culminaram na Conferencia de Bandung, brotando aí o estímulo, claro e evidente, aos confrontos em nome da independência dos povos colonizados.

Por fim, de forma fortuita mas pertinente, enquanto escrevia este texto, no dia 04ABR10, verificaram-se sequelas mal resolvidas com raízes nesse período histórico da colonização. O homicídio de Eugene Terre´Blanche, fundador do Movimento de Resistência Afrikaner (AWB), retomou o tenso clima social sul-africano e fez ressurgir velhas lembranças racistas na África do Sul.


Referências Bibliográficas

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FADUL, Francisco (2005), «Nação, Estado, Democracia e Direitos Humanos em África», in África: Género, Educação e Poder, Coord. de Óscar Soares Barata e Sónia Piepoli, Edição do Instituto Superior de Ciências Sociais e Politicas, Lisboa, pp. 257-274.

LARA, António (2002), Imperialismo, Descolonização, Subversão e Dependência, edição do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Lisboa.

MARTINS, Fernando (1998), A Política Externa do Estado Novo, o Ultramar e a ONU: uma doutrina Histórico-Jurídica (1955-68), Revista Penélope (Revista de História e Ciências Sociais), nº 18, pp. 189-206. Disponível online em http://www.cidehus.uevora.pt/textos/artigos/fmartins_polexterna_estadonovo.pdf, consultada em 31MAR10.

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MOREIRA, Adriano (1985), «De Bandung aos Problemas Norte-Sul» in Revista Nação e Defesa, Dir. do Vice-Almirante Adriano Lanhoso, Ano X, n.º 35, Revista Trimestral: Julho-Setembro, Edição do Instituto de Defesa Nacional, Lisboa, pp. 19-50.

VITORIANO, José et al (1998), História da África Ocidental, edição do Instituto Superior de Ciências Sociais e Politicas, Lisboa.

FREITAS, Gustavo (1976), «Declaração de Bandung» in 900 Textos e Documentos de História, Vol. III, edições Plátano, Lisboa, p. 348.

18/04/10

Paleografia e Diplomática - Transcrição de um documento histórico

Transcrição de um Documento (pág. 194-197)









Agradeço publicamente ao Sr. Professor Doutor João Alves Dias pela paciência e atenção que demonstrou ter comigo e com os meus colegas aquando da frequência da disciplina de Paleografia e Diplomática, no ano lectivo de 2009/2010. A disciplina é muito complicada mas o Sr. Professor sempre conseguiu manter animado o espírito dos alunos, conseguindo que eles não desistissem ao meio do semestre lectivo (onde eu próprio me enquadro). É uma cadeira que carece de atenção por parte dos dirigentes. Julgo ter uma carga horário muito reduzida para a dificuldade inerente ao processo de aprendizagem no âmbito da transcrição de documentos históricos/antigos, que quase sempre são complicados de compreender e são muito heterogéneos. O exemplo que transcrevo a seguir, que foi trabalhado na aula, é o mais fácil que existe para trenscrever. Quem não perceber isto não percebe mais nada.
A transcrição que apresento a seguir não foi corrigida integralmente pelo docente; é provável que não esteja totalmente correcta.
As letras que estão sombreadas a vermelho representam o incluso nas imagens em cima. Esta metodologia foi adoptada porque não consegui sublinhar as letras como ensinou o professor da disciplina, Sr. Professor Doutor João Alves Dias.


Primeira página (194)

(…) christo nosso senhor.
De sam sebastiam Antiphana.
O graça maravilhosa de que sam sebastiam resplandeçeo martyr muy maravilhoso o qual trazendo em ho seu abito de caualeiro confortaua com grande deligençia seus jrmaãos cristaãos : e os tementes coraçoões esforçaua pollas obras a elle dadas do çeeo.versiculo. Roga por nos bem aventurado martir sam sebastiam. Que sejamos fectos as promessas de cristo percalçar.
Oraçam.
SEnhor deus que ho teu martir sebastiam em tanta fee e amor tam ardentemente fortificaste que por nenhũas carnaaes promessas nem mezinhas nem tormentos nem seetas pode de tua fe ser mouido nem reuocado. Rogamos te que por seus dignos mereçimentos e roguos ajamos em nossa perseguiçam ajuda e em nossa tribulaçam consolaçam e prazer. e em todo tempo contra a pestenença remedio porque assi possamos contra as espreitas do diabo forçosamente pellejar: e ho mundo e o que em elle he desprezar: e nenhũa cousa contraira sua temer assi que finalmente pos/

Segunda página (195)


samos aver a gloria eternal por ty anos espirada e prometida. E jsto te rogamos por jhesu christo nosso senhor.
De sancta anna. Antiphana.
Ho celestrial misterio entrou em a bem aventurada anna por aqual foy a nos a virgem gloriosa naçida.versiculo.
Roga por nos sancta anna. Que sejamos.etcª.
Oraçam.
SEnhor deus que teueste por bem de dar tanta graça aa bem aventurada anna que tua muy gloriosa madre em seu ventre preçioso trouxeste. Da nos senhor pollo roguo da madre e da filha avondança de tua guarda e emparo : por que ellas cuja comemoraçam fazemos : por seus roguos nos tragam ao regno dos çeeos. E jsto te rogua mos por jhesu christo. etcª.
De sancta maria magdalena Antiphana.
Maria pois vntou os pees do senhor e alimpou os com seus cabellos e toda a casa foe chea de cheiro do ynguento.versiculo. Deixados lhe foram muytos pecados. /

Terceira página (196)




Porque muyto amou.
Oraçam.
DA nos padre muy piadoso que assi como a bem aventurada maria magdalena amando nosso senhor sobre todallas cousas ganhou perdam de seus pecados : assi anos açerca da tua misericordia empetre ha sempre duravel sanctidade. E isso te rogamus por jhesu christo. etcª.
De sancta caterina Antiphana.
Virgem sancta caterina pedra preçiosa de greçia : filha del rey de costa em a çidade de alexandrya rogua por nos pecadores cada dia.versiculo. Espargida he a graça em os teus beiços. Por jsso te bem disse. etcª.
Oraçam.
Senhor deus que deeste a ley a moyses em a altura do monte sinay : e em o meesmo lugar ho corpo de sancta caterina virgem e martir tua por os sanctos anjos teus maravilhosamente situaste. Roguamos te que nos por seus mereçimentos e roguo ao monte que jhesu cristo he mereçamos vijnr[sic]. E isto te rogamos por jhesu cristo. etcª.
De sancta barbara Antiphana. /

Quarta página (197)



Alegra te barbara bem aventurada que de muj alta doctrina e angelica resplandeces : alegra te virgem a deos graçiosa : que seguiste ao grande baptista em ha breuidade desta vida : alegra te porque ati visitou christo e corou tuas chagas todas. Alegra te alcançaste todo o que damandaste em teu martirio do alto filho de deus. Alegra te que ja es em o çeeo e louada por teu martirio : traze pois contigo a familia que aca te louua acabado o presente desterro.versiculo. Roga por nos. Que sejamos. etcª.
Oraçam.
EMcomendemos a ty senhor te rogamos o rogo da bem aventurada barbara virgem e martir tua e de todo aduersidade nos guarda : porque por seu roguo glorioso o muy sancto sacramento sagrado do corpo de nosso senhor jhesu cristo ante o dia de nossa morte por verdadeira pendença e pura confissam mereçamos reçeber. E jsto te rogamos por jhesu cristo nosso senhor.
De sancta margarida Antiphana.






14/04/10

Comentário ao texto: «O Declínio do Estado-Nação e o Fim dos Direitos do Homem» in Origens do Totalitarismo

ARENDT, Hannah (2004), «O Declínio do Estado-Nação e o Fim dos Direitos do Homem» in Origens do Totalitarismo, Dom Quixote, Lisboa, pp. 353-399.


Para melhor se compreender As Origens do Totalitarismo (1951) de Hannah Arendt, decidiu-se, em termos metodológicos, dividir o texto em três partes: (i) a autora, (ii) o contexto, (iii) o texto.
Na produção da recensão crítica, optou-se por sair das «fronteiras» estritas do texto Hannah, invocando outros autores, cujos «territórios» disciplinares são transversais e encaixam em muitos domínios no texto em análise.
De forma a reduzir a dimensão do ensaio final fez-se um texto corrido, deixando um espaço duplo, separando as partes que compõem a recensão.


Segundo Young-Bruehl (2004) , conhecer a vida de Hannah Arendt é essencial para compreender a sua obra. Esta ideia parece assertiva na medida que a autora partiu da sua “própria experiência-limite de apátrida, a quem todos os direitos foram negados com a supressão do elementar direito de cidadania”. (Borges, 2005:132).

Hannah nasceu em 1906, em Hanover, e faleceu em New York, em 1975 (Wagner, 2002:22). Destacou-se ao lado de grandes pensadores e ideólogos como John Locke, Enrico Belinguer e Martin Luther King. (Mondaini, 2006).

Em 1924 concluiu o Ensino Secundário e ingressou na Universidade de Marburg, na Alemanha. Foi aluna do filósofo Martin Heidegger de quem recebeu fortes influências e com quem teve um curto relacionamento amoroso. (Mondaini, 2006).

No ano seguinte transferiu-se para a Universidade de Freiburg, na Alemanha, onde foi aluna de Admund Husserl, e em 1926 mudou-se para a Universidade de Heidelberg (uma das mais prestigiadas Universidades da Alemanha) onde acabaria por se formar em filosofia. Teve como professor o filósofo Karl Jaspers, com quem estabeleceu uma longa e douradura amizade pessoal e intelectual. Ainda nesta Universidade, e sob a orientação de Karl Jaspers, em 1929, concluiu a sua tese de doutoramento, intitulada de Der Liebesbegriff bei Augustin. (Arendt, 2006:online, Mondaini, 2006).
Entretanto, Adolf Hitler absorvido num forte anti-semitismo racial ascende à liderança do Partido dos Trabalhadores Alemães (DAP) e altera o nome do partido para Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), vulgarmente conhecido como Partido Nazi ou Nazista. Em 1933 o Partido Nazi sobe ao poder e Hannah Arendt é forçada a abandonar a Alemanha, iniciando um percurso perigoso e sinuoso que vai estar na origem da sua produção literária, para a qual contribuiu a densa formação que recebeu na Universidade. (Young-Bruehl, 2004).

Após sair da Alemanha passou por Praga, Genebra, até chegar a Paris, onde durante seis anos trabalhou com várias organizações que apoiavam os refugiados judeus. (Arendt, 2006:online). Durante a sua permanência em França trocou impressões com vários pensadores, destando-se o escritor Walter Benjamin. (Arendt, 2006:online).

Em 1941, no âmbito da Segunda Guerra Mundial, a França foi invadida pela Alemanha e ficou a ser governada por Vichy, um governo de influência Nazi. Os franceses ficaram obrigados a pagar os custos de ocupação às tropas alemãs, bem como, entre outras coisas, a entregar todos os judeus de França à Alemanha. Neste contexto, Hannah como era judia foi enviada para um campo de concentração, em Gurs, sob a acusação de Estrangeira Suspeita, de onde conseguiria fugir para New York, em Maio de 1941. (Young-Bruehl, 2004).

Apesar de descender de família hebraica não foi educada segundo a tradição judia e sempre professou a sua fé em Deus de forma livre, daí ter dedicado quase toda a sua vida a compreender o destino do povo judeu perseguido por Hitler. Entende-se o seu sentimento de revolta pela reiterada falta de interesse do Estado alemão nos Direitos Humanos, bem como o seu contributo para a compreensão do totalitarismo. (Arendt, 2006:online).

Em New York rapidamente integrou um grupo de cidadãos influente, intelectuais e escritores, em torno da revista Partisan Review, mais tarde leccionou em várias Universidades (Princeton, Berkeley e Chicago) e terminou a sua carreira como professora de filosofia política na New School for Social Research.

Das suas obras destacam-se, As Origens do Totalitarismo (1951); A Condição Humana (1958); Eichmann em Jerusalém (1963); The Life of the Mind (1978); Lições de Filosofia Política de Kant (1982).


O texto de Hannah Arendt em análise foi produzido em meados do século XX, após o flagelo que tinha sido os primeiros cinquenta anos do século XX, onde decorreram duas guerras mundiais separadas por uma grave crise económica sem precedentes na História da Humanidade, onde morreram milhões de pessoas e outras tantas ficaram feridas, deficientes, desalojadas, sem acesso a alimentação, sem recursos de saúde e com doenças para tratar, sem terra e sem casa, sem Estado protector, consideradas pelo poder decisório como animais e não como Seres Humanos, já que foram esquecidas, subjugadas ou renegadas. (Samuelson & Nordhaus, 200; Arendt, 2006:online).

Quando Hannah conseguiu a cidadania norte-americana decidiu lutar com veemência os regimes totalitários (ou absolutos), condenando-os nos livros anteriormente mencionados, nomeadamente o nazismo com a luta de raças e o soviético com a luta de classes. Foi neste contexto que surgiu As Origens do Totalitarismo, durante o seu percurso académico depois de ter chegado aos Estados-Unidos. (Sarendt, 2004; Young-Bruehl, 2004).

A obra em si é um marco histórico, tem um elevado rigor contextual, representa a excelência da autora, dotada de informação credível e bem fundamentada, e não parece errado afirmar que apesar de não esgotar o tema, aprofunda-o a níveis quase de pormenor, principalmente ao nível dos exemplos, que evidenciam a sua vivência auto-biográfica nos acontecimentos narrados.
Esta obra é, ainda hoje, um dos maiores contributos para a compreensão do totalitarismo, considerada mesmo como um clássico. A crítica que a obra faz aos regimes totalitários é pertinente, numa época em que ainda vigoram regimes com estas características e, mais do que isso, num terreno onde a democracia liberal não afastou por completo os vestígios de uma ideologia de terror que torna o homem supérfluo. (Young-Bruehl, 2004; Arendt, 2006:online).

Hannah Arendt aborda «O Declínio do Estado-Nação e o Fim dos Direitos do Homem», no capítulo nono da sua obra intitulada, As Origens do Totalitarismo. Fruto do seu percurso de vida, este capítulo vai incidir, sobretudo, na primeira metade do século XX, no contexto geográfico europeu e vai dar ênfase ao princípio de Cidadania aceite na Europa em 1919, após a Primeira Guerra Mundial. (Oommen, 1994).

A autora dividiu o capítulo em duas partes, precedidas de um texto inicial, muito sintético, que resume de forma conclusiva o artigo:
1- “A nação minoritária e os povos sem Estado” (Arendt, 2004:357).
2- “Perplexidade dos Direitos do Homem” (Arendt, 2004:385).

Este capítulo está estruturado de forma simples, de fácil leitura e directo na forma como transmite a informação ao leitor. Começa por abordar a Primeira Guerra Mundial, reflectindo e criticando a sua existência, e ao mesmo tempo ilustrando o que irremediavelmente este conflito causou, desde mortes, desemprego, instabilidade política/social, e consequentemente, movimentações de refugiados desprovidos de qualquer ajuda por parte dos governos que os representam, mais interessados numa ideologia de terror desvalorizando o real valor da vida humana. Refere-se ainda aos sucessivos conflitos que ocorreram depois do fim da Grande Guerra, e destaca as populações que não foram apoiadas, às que foram desvalorizadas e passadas para um plano inferior dentro das prioridades estatais, recordando que o espírito dos governos era o de guerrear até ao último suspiro, não olhando a métodos para atingir os fins.

A autora refere-se a estes acontecimentos de forma muito clara e firme, demonstrando as fragilidades dos cidadãos face às adversidades, que num parágrafo resume quase todo o capítulo: “ [os cidadãos] uma vez fora do país de origem, permaneciam sem lei; quando deixavam o seu Estado, tornavam-se apátridas; quando perdiam os seus direitos: eram o refugo da terra”. A autora nas frases seguintes continua de forma veemente a distribuir culpas pela política totalitária consciente, como fonte destruidora do que designa de “estrutura da civilização europeia” (Arendt, 2004:353).
Hannah considera os grandes conflitos bélicos que se deram na Europa instrumentos de desintegração, responsáveis pelo colapso de quatro impérios e mudando de forma radical do mapa geo-político da Europa e do Médio Oriente. Do ponto de vista das populações que viviam no cenário de guerra, segundo a autora, a desintegração social/cultural deu-se de forma mais intensa do lado dos países que perderam a guerra , nomeadamente nos “Estados recém-establecidos após a liquidação da monarquia dos Habsburgos e do império czarista” (Arendt, 2004:354), levando a conflitos constantes entre si e entre próximos: “ (…) eslavos contra checos, os croatas contra sérvios, os ucranianos contra os polacos”. (Arendt, 2004:355).

Partindo deste exemplo que exemplifica as falhas de uma política totalitária, a autora transita para as vítimas deste tipo de política: as pessoas, e destaca as suas principais carências, tais como a privação da posição social, da possibilidade de trabalhar e do direito de ter propriedade, que diz resultar na criação de grupos sociais marginalizados, os apátridas e as minorias, que segundo a autora, viram os seus direitos desaparecer, direitos que deveriam ser irrevogáveis e intransmissíveis, logo permanentes.

Ao longo de vários parágrafos a autora crítica a ausência dos direitos humanos para aqueles que tinham perdido os direitos nacionais (povos sem Estado), a forma como os opressores imprimiam os seus valores aos povos desnacionalizados, a reprovável exclusão social dos dispensáveis ou indesejáveis (judeus, trotskistas), e conclui com palavras fortes afirmando que a “ (…) própria expressão “direitos humanos” tornou-se para todos os interessados – vítimas, opressores e espectadores – uma prova de idealismo fútil ou de tonta e leviana hipocrisia”. (Arendt, 2004:357).

Depois de fortes críticas ao modelo de política totalitária, a autora aprofunda o tema da nação minoritária e dos povos sem Estado, iniciando a parte um do artigo.

Antes de abordar a primeira parte parece pertinente reflectir sobre os termos que ela apresenta, nomeadamente «Estado» e «Nação», ou seja, causa e consequência da resposta original. Apercebe-se que a Nação surge porque existe o “nacionalismo”; é este que lhe dá forma. E surge numa relação biunívoca com o Estado. Este, em certa medida, pode dizer-se que faz a Nação, confirmando a célebre frase de Mãssimo D´Azeglio: «fizemos a Itália, agora teremos de fazer os italianos». Ou seja, o Estado como entidade política com contornos mais definidos e menos ambíguos tende a identificar-se com a Nação, ao mesmo tempo que a Nação tende a buscar no Estado a sua plena legitimação. Deste modo, pode-se afirmar que o “nacionalismo” é tão antigo como a humanidade. (Oommen, 1994).

Percebendo a diferença entre estes dois termos torna-se mais fácil perceber Hannah, quando se refere de forma crítica aos tratados de paz; tratados que começaram a surgir depois da Grande Guerra visando “acomodar” no espaço os refugiados e suprir rebeliões, acabando por propiciar o aparecimento de minorias étnicas a lutar pela sua identidade, que a autora designa de nações minoritárias. (Arendt, 2004).

A autora reprova de forma incessante os fundamentos dos tratados de paz assinados após a primeira Guerra Mundial, demonstrando que o seu desajustamento, ou insucesso, se deve ao facto de os seus criadores pertencerem a uma geração formada antes do conflito bélico, que nunca chegou a perceber o verdadeiro impacto da guerra.
Critica o facto de quererem criar Estados-nação pelos métodos dos tratados de paz, e principalmente, a questão da realização de tratados aglutinadores onde as fronteiras políticas não coincidem com as fronteiras nacionais. De facto, isto é uma realidade que antes da Grande Guerra já se tinha verificado e ainda se continua a verificar actualmente. Por exemplo, no rescaldo das guerras napoleónicas, a Europa apresentar-se-ia com um novo desenho traçado a régua e a esquadro pelo plano Pitt (Primeiro Ministro inglês) com total alheamento de quaisquer preocupações de homogeneidade étnica e cultural. Contudo, a ideia de autodeterminação nacional estava ainda longe de ser inventada. Mais tarde, em África, o traçado das fronteiras dos novos Estados foi igualmente efectuado ao abrigo do mais puro arbítrio. Daqui resultou, na modernidade, os conflitos de cariz nacionalista entre pessoas que não se identificam mas que têm de dividir o mesmo espaço físico. (Ferreira, 2002).
Responsabiliza os tratados de paz pela desacreditação dos Estados recém-criados e por permitirem que os povos que não foram “agraciados” com um Estado, considerassem os tratados de paz uma fraude, que favorecia uns e escravizava outros. (Arendt, 2004:358).
Afirma que os tratados de minorias, criados para proteger grupos humanos de pequena dimensão desprotegidos pelos tratados de paz, somente eram aplicados quando se verificava num conjunto de dois ou mais Estados , um número considerável de minorias de uma determinada nacionalidade, o que resultava num abandono irresponsável de um “colorido” de nacionalidades, que em alguns casos superava 50% da população total no interior de um único Estado; pessoas que viam os seus direitos desprezados, sem protecção, povos sem estado mas com sentido de existência e de pertença a um colectivo, que evitavam como podiam a perda das suas raízes culturais insistindo nas suas nacionalidades e recusando ligações a outras nacionalidades que pudessem diluir a pureza e independência das suas origens.

Hannah Arendt citando Webster (1929), ilustra esta realidade com números, explicando que até 1914 cerca de 100 milhões de pessoas não se sentiam realizadas nas suas ambições nacionalistas. Numa espécie de tom satírico, adverte que quando surgiram os povos sem estado caiu a desculpa dos países mais antigos que recusaram adoptar legislação de protecção dos direitos humanos, alegando terem constituições antigas e alicerçadas nos direitos humanos, citando especificamente o caso francês.

Apesar de uma crítica bem estruturada e fundamentada ao sistema político no âmbito dos tratados de minorias, reconhece, por um lado, que os responsáveis por estes acordos “ (…) não previram a possibilidade de transferências maciças de população, nem o problema de pessoas tornadas «indeportáveis» por falta de país de acolhimento”, e em consequência das altas densidades populações sem uma nação, optaram por repatriar “ (…) o maior número possível de nacionalidades a fim de desembaralhar «a fixa de população mistas» ”. (Arendt, 2004:366). Por outro lado, concede algum mérito aos tratados de minorias por “ (…) serem garantidos por uma entidade internacional, a Sociedade das Nações, (…) por reconhecerem a minoria como instituição permanente (…), e por criar um modus vivendi duradouro”. (Arendt, 2004:364).

A condição de apátrida (pessoas em qualquer nacionalidade) despoletada após a Segunda Guerra Mundial, nomeadamente com os casos de povos sem estado, foi uma consequência deste abusivo desinteresse pela vida humana. Por outro lado, a condição de apátrida foi uma forma de resistir à deportação para aqueles que não queriam ser deportados para uma pátria que apesar de ser a sua não era desejada, porque não era capaz de assegurar a segurança aos seus cidadãos.

O termo «apátrida» depois do grande conflito bélico foi “colado” ao termos «deslocados de guerra», através de uma manobra política que pretendia levar ao seu esquecimento, ou seja, formar um misto que estrangulasse a condição de apátrida através da anexação dos dois grupos sociais, atropelando a génese da sua constituição. Esta miscigenação entre apátridas e deslocados de guerra facilitava o método operativo das autoridades, que passava por repatriar todas as pessoas a quem não lhe fosse reconhecido figura jurídica de pessoa sem estado, mesmo que o país de origem dos repatriados não os aceitassem, ou que os aceitassem não como cidadãos mas para um eventual castigo.

A autora com alguma dureza ataca os países ditos desenvolvidos , considerando a sua política contemporânea “dolorosamente irónica” e desequilibrada, que insiste em considerar inalienáveis ou intransferíveis, os direitos humanos dos cidadãos desses países, mas ao mesmo tempo, de forma pouco ortodoxa e discriminatória, aceita e compactua em manobras que deixam outros cidadãos desprotegidos de qualquer direito humano; é uma atitude segregacionista e de intolerância que se manifesta até ao nível das estatísticas: reflecte-se na ausência total de estatísticas credíveis sobre o assunto. (Arendt, 2004:370).

Hannah confirma que os conflitos subsequentes ao pós-guerra alteraram imenso a vida das pessoas ao ponto de a sua nacionalidade se alterar de ano para ano, dependendo que quem exercia o poder, sendo que o normal era o Estado ocupante não reconhecer determinado grupo de pessoas como seus nacionais. A título de comparação, o professor doutor Sandro Mezzadra da Universidade de Bolonha, na Itália, ao estudar os movimentos migratórios e as suas consequências na Itália do século XXI, conclui que a política governamental e a legislação produzida no país fomenta um novo nacionalismo (com tons racistas) e leva à exclusão social dos imigrantes. (Mezzadra 2009:267). Em Espanha durante o ano de 2009 foram vários os actos racistas contra imigrantes, devido ao país estar em recessão e com uma taxa de desemprego na ordem dos 18%. De facto, quando o mundo do capitalismo não corresponde às expectativas das populações, mais uma vez são as minorias pobres que “pagam a factura” e (…) a pobreza força o homem livre a agir como escravo” (Arendt, 2001:79[1958]).

Apesar de um olhar controlador das nações ocidentais sobre estas populações, a deslocação massiva de milhares de apátridas provocou danos na estrutura até então vigente no Estado-nação, culminado na “ (…) abolição tácita do direito de asilo, antes símbolo dos direitos do Homem na esfera das relações internacionais”, principalmente quando se tratava de personalidades vincadas à politica, e no que a autora denomina de segundo choque, que “ (…) decorria da dupla constatação de que era impossível desfazer-se dos apátridas ou transformá-los em cidadãos do país de refúgio”., ou seja, dois extremos: “repatriação ou naturalização”. (Arendt, 2004:372-373).

Neste período e principalmente no auge deste problema, os legisladores fizerem muitos esforços no sentido de separar o termo apátrida do termo refugiado; porém, sem sucesso, tendo sido convencionado que todos os refugiados em termos práticos eram apátridas.

Como já referido anteriormente, muitos povos ficaram sem nacionalidade, sem Estado, mas nunca ficaram sem o sentimento de pertença a uma comunidade nacional. Isto levou os países desenvolvidos a desdobrarem-se em esforços para os expulsarem, nomeadamente aproveitando o facto destes não se enquadrarem nas estruturas legais da Lei para permitirem às suas forças de segurança metodologias extrajurídicas, não muito ortodoxas, que levassem à redução das minorias nos seus territórios. A oposição aos apátridas era de tal forma intensa, que, segundo a autora, um pequeno roubo dava mais direitos ao cidadão do que à própria condição de pessoa sem estado. Em tom de ironia a autora diz mesmo que um apátrida criminoso não podia ser tratado pior que outro criminoso; só assim, na condição de “transgressor da lei” o apátrida podia ser protegido pela própria Lei e tornar-se respeitável, ou seja, a única forma de ser enquadrado nas leis dos países. (Arendt, 2004:379).

Para Hannah Arendt existia uma excepção: os apátridas génios, não no sentido culto que a palavra actualmente suporta, mas no sentido da diferença, a título de exemplo, um fora-da-lei ou um psicopata assassino era um génio, porque produzia entusiasmo e diversão às classes mais abastadas da época.
De facto em sede de concertação internacional nunca foi possível no seio dos países desenvolvidos estabelecer e determinar uma condição legal ao estatuto de apátrida, e as restantes metodologias para trabalhar este tema, tais como a naturalização, foram um autêntico fracasso, já que “a diferença entre um residente naturalizado da de um residente apátrida não era suficiente para justificar o esforço de se naturalizar (…): o primeiro era frequentemente privado de direitos civis e ameaçado a qualquer momento com o destino do segundo”. (Arendt, 2004:378).

No final do primeiro ponto deste capítulo a autora recrimina a verdade utópica em que os países desenvolvidos se revestiam e afirma que “o Estado-nação não pode existir quando o princípio da igualdade perante a lei é quebrado”, ou seja, diz a estes estados que viviam numa ilusão totalmente confusos em relação aos reais valores da vida e do verdadeiro significado e simbologia do Estado-nação. (Arendt, 2004:384-385).

No segundo ponto do capítulo nono da obra supra indicada, a autora vai inicialmente debruçar-se sobre a história dos direitos humanos e conclui ilustrando o grau de aplicabilidade desses direitos às populações.

Começa por abordar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamada em França, em 1789, atribui-lhe a emancipação dos Homens da tutela de alguns estratos sociais, dos comandos de Deus, da História e das tradições, por ser uma Lei transversal às sociedades, mas ao mesmo tempo critica-a por se referir a um ser humano enigmático e inexistente, justificando que até os “selvagens viviam dentro de algum tipo de ordem social”. (Arendt, 2004:386).

Registo que uma das primeiras críticas levada a cabo contra a Declaração foi realizada por Karl Marx , em 1844, através da obra, A Questão Judaica, onde o filósofo assume que os Estados teoricamente conseguiam anular as diferenças de nascimento, da condição social, na cultura, na liberdade e igualdade de todos perante o exercício da soberania popular, mas deixaram intacta, como que um privilégio, a propriedade privada, a cultura e a ocupação, pois o plano político para funcionar tinha que se sobrepor ao plano civil. Assim, os Direitos Humanos fragmentavam-se, erradamente, entre Direitos do Homem e Direitos do Cidadão, conforme citação seguinte de Marx (2005 [1844]:34): “Os direitos humanos, distinguem-se, como tais, dos direitos civis. Qual o homem que aqui se distingue do cidadão? Simplesmente, o membro da sociedade burguesa. Por que se chama o membro da sociedade burguesa de "homem", homem por antonomásia, e dá-se a seus direitos o nome de direitos humanos? Como explicar o facto? Pelas relações entre o Estado político e a sociedade burguesa, pela essência da emancipação política”.

Para Agamben (2003) o próprio título da Declaração é dúbio e enviesa a sua leitura, ficando o leitor na dúvida se se refere a duas realidades distintas mas autónomas ou se a um sistema único, onde o homem aparece incorporado e camuflado na imagem do cidadão.
Especialista na questão do Estado de excepção, responsável pela edição italiana da obra de Walter Benjamin, este filósofo italiano indica-nos alguns modelos possíveis de regulamentação do estado de excepção, seja através do texto da constituição, como nos casos da França e Alemanha, seja através de uma lei, como nos casos da Itália, da Suíça, do Reino Unido e dos Estados Unidos.

Entende-se por Estado de excepção o oposto de um Estado de direito . É decretado pelas autoridades nacionais, são concentrados os poderes e suspende de forma temporária os direitos e garantias constitucionais, ou seja, torna-se um Estado Democrático totalitarista, que se pode comparar com a repressão sobre as minorias de que fala Hannah Arendt, já que mesmo na actualidade a suspensão dos direitos dos cidadãos pode remeter para situações abusivas e de descontrolo das funções governativas, como se verificou recentemente em prol da catástrofe natural que atingiu o Haiti.

Ao referir Giorgio Agamben é forçoso referir Carl Schmitt como seu oposto. Este último foi um grande especialista alemão em direito constitucional e internacional, jurista e filósofo. Porém, a sua carreira só não é de todo brilhante aos olhos da sua contemporaneidade porque se “alistou” no regime nacional-socialista, tornando-se um adversário da democracia liberal. Para Schmitt era impossível regular por leis aquilo que por definição não podia ser normalizado, contrastando com Agamben.

A autora atribui o fundamento dos Direitos do Homem à Revolução Americana de 1776, que teve as suas origens na assinatura do Tratado de Paris, em 1763, e à Revolução Francesa, entre 1789 e 1799, uma das maiores revoluções da história da humanidade que aboliu a servidão e os direitos feudais e proclamou os princípios universais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
Segundo Marx (2005 [1844]) a revolução francesa apesar de todas as suas ambivalências transpôs fronteiras e proclamou a liberdade, igualdade e fraternidade, mas libertou um homem mau e egoísta, já que os Direitos do Cidadão ficaram subordinados aos Direitos do Homem - desse homem mau e egoísta -, ou seja, a Revolução Americana e a Francesa instituíram uma ideologia dos direitos do homem e do cidadão, e uma ideologia burguesa que se voltava contra o reino de arbitrariedade do feudalismo, mas também, ao mesmo tempo, para a defesa dos interesses da classe mais exploradora, a burguesia.

Numa síntese da sua evolução histórica, a autora refere-se ao século XVIII como um período negligente no processo de desenvolvimento dos Direitos Humanos, onde foi notável a incapacidade de defesa dos indivíduos do constante crescimento do poder dos Estados, e da insegurança social causada pela revolução industrial. Considera que o século XIX também não trouxe melhorias ao conceito, antes pelo contrário, permitiu a sua marginalização pela ideologia política, e que o século XX continuou a ignorar este assunto, já que não foi contemplado nas agendas políticas dos partidos liberais.

Hannah Arendt satiriza a efectiva ausência de Direitos Humanos dizendo que não era estranho uma pessoa perder o seu lar, o que era estranho era que essa mesma pessoa nunca mais o pudesse recuperar, e critica o modelo político e diplomático que os eruditos criaram no século XX, dizendo ser um modelo em forma de círculo (a família das nações), fechado ao exterior e fechado a quem fosse expulso do círculo, que se protegia entre si e esquecia os demais povos, quando os direitos e deveres das Nações não dependiam apenas de acordos, tratados e resoluções dos organismos internacionais, mas encontravam o seu fundamento na dignidade idêntica de todos os homens e mulheres individualmente, sejam eles cidadãos ou estrangeiros.

A autora crítica todos os tratados com estatuto de excepcionais, que serviam para remediar, estratificar e padronizar, deixando de fora os casos não lineares. Dá como exemplo os tratados de reciprocidade (assinados depois dos conflitos bélicos), que deixaram de servir as necessidades quando se diversificaram as categorias de perseguidos; se é que alguma vez se chegaram a adequar à realidade.

Considera escandaloso que a justiça passasse a ser pensada em termos de castigos, ou seja, os juízes partiam para a acusação com o pressuposto que os acusados eram efectivamente culpados, antes que se averiguasse o que quer que fosse, levando à desconsideração total e perda de direitos humanos. É uma constante as ironias da autora ao longo do texto e neste tema não fugiu á regra, citando Anatole France: “se eu for acusado de roubar as torres de Notre Dame o mais que posso fazer é fugir do país”. (Arendt, 2004:391). De facto, a justiça estava tão enviesada que era desacreditada. Nesta citação verifica-se a clara impossibilidade de consumar tal furto, mas parece evidente pelas palavras da autora que a questão não passava pela verdade, mas sim pela prova culpa, ainda que injustificável, utópica ou mesmo anormal.

Para concluir este capítulo vou cita-se uma frase de Hannah Arendt que expressa o expoente máximo da indiferença por parte dos países desenvolvidos na questão das pessoas sem Estado, e a angústia em que viviam os oprimidos perante uma desigualdade que traduzida por palavras daria qualquer coisa como, pessoas de primeira e pessoas de segunda classe:
“ O soldado durante a guerra é privado do seu direito à vida; o criminoso, do seu direito à liberdade; todos os cidadãos, o direito de procurarem a felicidade; mas ninguém dirá jamais que em qualquer destes casos houve uma perda de direitos humanos. (…) A sua situação angustiante não resulta do facto de não serem iguais perante a lei, mas sim de não existirem mais leis para eles; não serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais que se interesse por eles nem que seja para oprimi-los. (…) Os próprios nazis começaram a sua exterminação dos judeus privando-os, primeiro, de toda a condição legal (…) e separando-os do mundo para os juntar em guetos e campos de concentração (…). São privados não do seu direito à liberdade, mas do direito à acção; não do direito de pensarem o que quiserem, mas do direito de opinarem. Privilégios (em alguns casos), injustiças (na maioria das vezes), bênçãos ou ruína ser-lhes-ão dadas ao sabor do acaso e sem qualquer relação com o que fazem, fizeram ou venham a fazer”. (Arendt, 2004:392-393).


A leitura do texto é de excelente qualidade, permite pensar e reflectir sobre questões que são geralmente enevoadas pela sociedade e deveria ser um texto de leitura de massas pela sua riqueza histórica e científica. Não obstante, permite algumas críticas, a começar pelo título da obra.

Souki (2006:47) que se revê e fundamenta nas palavras de Enegrén (1984), diz que o título da obra de Hannah Arendt é “enganoso”, porque “o totalitarismo é um fenómeno sem precedentes, e nenhuma evolução histórica, perfeitamente articulada, poder dar conta plenamente de suas origens”. Porém, no sentido oposto, outras vozes se levantam e dizem que o totalitarismo nunca existiu até ao século XIX porque era limitado pela ausência de acessibilidades e comunicações.
Apesar da contradição, na verdade, os filósofos que viveram no século XIX, nomeadamente Hannah Arendt, caracterizam-se por uma reflexão da filósofa com origem numa espécie de pasmo e de choque, em parte devido aos flagelos impostos pelos grandes conflitos bélicos, nomeadamente o genocídio de minorias nos campos de concentração por parte dos nazis.

Enegrén (1984) e Souki (2006), estes dois grandes filósofos, fazem referência a esta visão negra e de algum modo negativa, que se compara, se é que é possível fazer comparações, com a nossa ideia moderna de Idade Média: um longo período de retrocesso, trevas, guerras, fomes e mortes. Noutro aspecto, que também tem algum sentido apesar de ser a título de curiosidade, Souki (2006) diz que a obra de Arendt é mais socióloga do que histórica.

Ao longo da segunda parte do capítulo verifica-se que a autora menciona datas, nomeadamente quando se refere à evolução dos Direitos Humanos, entre os séculos XVIII e XX. Contudo, as origens dos direitos do homem, entendidos como um conjunto de normas que visam proteger o ser humano de excessos por parte dos órgãos do Estado, perdem-se nas brumas da história e confundem-se na luta do homem pelos seus direitos e liberdades inerentes à sua condição e dignidade. A título de exemplo, o Código de Hamurabi tinha a preocupação de impor leis para proteger as viúvas, os órfãos e os fracos, ou seja, visava uma uniformização cultural e um equilíbrio social, e assim deve ser considerado um dos primeiros textos elaborados na defesa dos Direitos Humanos. Concluindo, parece-me que a forma de descrição exaustiva e metódica que a autora adoptou ao longo de todo o capítulo nono não se verifica nesta temática na segunda parte, ficando a ideia que autora abordou a questão com mais superficialidade.
Ainda no âmbito da segunda parte do capítulo nono, não posso deixar de comentar (alerto, sem qualquer fundamento comprovável) a passagem do texto em que a autora escreve: “Os Direitos do Homem, solenemente proclamados pelas Revoluções Francesa e Americana, como novo fundamento para as sociedades civilizadas…” (Arendt, 2004:88). O que me chamou a atenção nesta passagem foi o facto de pela primeira vez no texto a autora não se referir aos acontecimentos de forma cronológica, ou seja, neste aspecto concreto, primeiro deu-se a revolução Americana e depois a Francesa; o contrário do que Hannah Arendt escreveu.

Concluindo o ensaio, a historiografia do século XIX veiculava a história política, os grandes feitos, os grandes homens, os grandes acontecimentos, no fundo escrevia aquilo que as grandes patentes gostavam de ouvir. Nesta sequência, percebe-se o porquê das minorias serem retratadas desta forma, esquecidas, abandonadas, até mesmo, desprezadas, tornando-se inconvenientes e supérfluas aos olhos dos países ditos ocidentais ou desenvolvidos, que possuíam grande estabilidade política e uniformizarão cultural.

Do ponto de vista das minorias, como diz Miguel Alves dos Santos na obra coordenada por Boaventura de Sousa Santos, "(…) A revolta que sempre tive e o meu sofrimento que sempre passei é ser uma pessoa discriminada, uma pessoa que luta, de luta de classes, e ser descriminadá". (Santos, 2008:73).


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