28/12/08

A Pragmática de 1340

A pragmática de 1340 resultou da reunião de cortes, que reuniu elementos de todo o espectro da sociedade, em Santarém, no primeiro dia do mês de Junho do ano de 1340, data em que reinava D. Afonso IV.

As leis elaboradas e aprovadas constantes no documento eram para aplicar a todos os cristãos do reino, menos aos eclesiásticos, em virtude de estes serem regulados pela lei canónica, que tinha sido revista na reforma Gregoriana, levada a cabo pelo Papa Gregório VII.

De acordo com o Vol. IV – Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV da Nova História de Portugal (1ª edição/editorial Estampa) da autoria de A. H. Oliveira Marques (1987:502) os historiadores até à data da publicação da referida obra não encontraram qualquer documento, considerado válido, que certifique que Portugal estava a atravessar uma crise geral. Verificaram-se sim, em 1340, uma tendência para a subida de preços nos produtos industriais em relação aos preços praticados em épocas anteriores, que permitia uma rivalidade entre a burguesia e todos os sectores hierárquicos da nobreza, e ainda, uma preocupante dilatação do proletarizado móvel, conforme se verifica no extracto seguinte da obra supramencionada de A. H. Oliveira Marques (1987:502):
“A terra já não bastava como fonte suficiente de rendas, não podendo competir com os lucros do comércio e do artesanato. Obviamente, a Nobreza lutava com um problema de adaptação. Incapazes de encarar as novas realidades, investindo no comércio e em outras actividades lucrativas (…). Essa mesma pragmática de 1340 revela certa inquietação no seio das classes inferiores, expressa pela ruptura da estabilidade feudal e pelo surto de um proletariado móvel. ”

Poderá se deduzir que o rei e os conselheiros estavam preocupados com a subida dos preços, por dois motivos: primeiro, por ser uma novidade perturbadora, e segundo por estar a alterar o padrão social da sociedade até então vigente. Todavia, a elaboração da pragmática não se deve somente aos factores já enumerados, mas sim à junção desses factores com um conjunto de "situações pouco usuais que (…)" A. H. Oliveira Marques (1987:502) deterioraram imenso o funcionamento normal do quotidiano do reino português: uma sucessão de maus anos agrícolas, pestes e a expectativa de uma possível invasão dos Árabes a Sul do reino de Portugal.

Apesar de, só por si, cada situação enumerada provocar muitos danos, todas em conjunto tornaram-se perigosas, e levaram à morte milhares de pessoas. A título de exemplo, os maus anos agrícolas facilitaram a propagação da peste negra, em virtude de os corpos estarem debilitados, desprotegidos e fracos, devido à escassez de alimento.

Foi está conjuntura que forçou a realização das cortes de Santarém e a elaboração desta pragmática. Visava diminuir o consumismo, regular e uniformizar uma série de atitudes sociais (através de um conjunto de leis), e também, angariar fundos para fazer frente aos gastos que se avizinhavam, em função do esforço de guerra para enfrentar os Árabes. Convêm referir que documentos deste género já tinham sido elaborados algumas vezes em outros países da Europa, e visavam geralmente fazer face a situações de crise ou calamidade pública.

As citações apresentadas a partir deste ponto referentes à pragmática de 1340 tem a seguinte referência bibliográfica: A. H. de Oliveira Marques, “A Pragmática de 1340”, in Ensaios de História Medieval Portuguesa, 2ª Ed., Lisboa, Editorial Veja, 1980, pp. 93 – 119.

A lei começa com um preâmbulo, seguido de um conjunto de 29 artigos, de carácter normativo, distribuídos da seguinte forma: 6 (seis) artigos incidem sobre a alimentação, 17 (dezassete) regulam o vestuário (era através do vestuário que as pessoas procuravam demonstrar sinais de riqueza), e por fim, 6 (seis) artigos abordam questões diversas com elevada influência no reino.

No preâmbulo o rei (D. Afonso IV) admite que as pessoas estavam a viver acima das suas possibilidades; faziam mais despesas das que poderiam fazer: em comer e em vestir. Apela aos homens bons do reino que contenham os gastos, que não comam carne e pescado fora do que está decidido e autorizado na lei, e regulado entre o Art.º 1 e Art.º 7 da presente pragmática.

(Citação do Preâmbulo)“ (…) Veendo e consijrando o grande dano que Recreçeo e rrecreçe. A todolos do nosso ssenhorio porque fazerom e fazem majores despesas que as que deuyam fazer en comer e em uestir e en outras cousas. Pera rrefrear e tolher este dano que sse nom faça daquy em deante. Estabelleçemos com consselho de muijtos homens bõos dos nossos Reynos que hj eram, per rrazom de Cortes. que entom fazemos, que nenhuu daqui en deante nom comha aos dias da carne nem aos dias do pescado, se nom pela guisa que se adeante ssegue:”

A partir do Art.º 8 da lei, D Afonso IV e a sua corte, passam a regulamentar a indumentária, desde os tipos de tecido às tipologias de vestidos passíveis de utilização, identificando também os tipos de apetrechos que poderiam ser utilizados (cordões, ouro, pratas, fitas, cintas de ouro), e ainda, do Art.º 21 ao Art.º 24, regulam a forma como se devem apresentar os cidadãos, (a título de exemplo: todos tinham de andar com o cabelo curto), perfazendo os dezassete artigos que incidem sobre o vestuário.

(Citação do Art.º 8) “Outrossy teemos por bem e mandamos que os Ricos homens nom façam de uestir no Ano majs que tares pares de panos. E seiam os panos feytos per tal guisa que andem da terra alçados três dedos E o par dos panos se conte per esta maneyra. Manto e pelote e ssaja ou tabardo com pena ou com cendal…”

Esta lei muito abrangente era também muito dirigida. Estabelecia formas diferentes de vestuário para as diversas classes sociais, e ainda subdividia os grupos sociais em função dos seus rendimentos; o que é visível a partir do Art.º 8 da supracitada lei. Estamos perante uma sociedade extremamente estratificada e elitista.

Mais especificamente, o art.º 8 decreta que, entre outras coisas, os ricos-homens não podiam comprar por ano mais de três pares de fatos, sendo que o pano das pernas deveria andar três dedos acima da terra.

O Art.º 11 regula o grupo social dos cavaleiros, e logo a seguir o Art.º 12 regula o grupo social dos escudeiros.

(Citação do Art.º 11) “Outrossy teemos por bem que os Caualeyros nom façam de uestir no Anno majs de dous pares de panos. E sejam feytos os panos de tantos couedos e per aquela guisa, que dito he, dos Ricos homens.”

(Citação do Art.º 12) “Outrossy téémos por bem que escudeiro que de nos ou dalguu Ricomem teuer marauedis nom faça no Anno majs duu par de panos.”

Esta hierarquia na elaboração dos artigos, feita com base qualitativa, revela a elevada estratificação que existia na época medieval, como foi referido anteriormente.

O Art.º 14 define as obrigações gerais da aplicação das regulamentações anteriores, e ainda as penalizações pelo incumprimento da lei.

(Citação do Art.º 14) “ (…) E sse alguus forem contra o que de ssuso dito he, percam os panos, e as cintas, e as sselas, e as espadas, e as outras cousas. E sse as ditas cousas auer nom poderem, ou forem danadas en tal guisa, que ualham pouco, paguem a estimaçom, segundo poderiam ualer quaando eram nousas. E de todo aia o acusador a meyadade. E nos a outra meyadade. E possam seer acusados segundo as pessoas que forem na maneyra, que de ssuso dito he, nos outros Casos.”

Cria uma lei que fomenta um sistema de denúncia, transformando cada pessoa num “polícia”, ou seja, faz com que seja vantajoso para as pessoas andarem atentas aos infractores; por cada denúncia que fosse feita, a coima a aplicar era dividida de igual forma entre quem fez a denúncia e o rei.

O Art.º 21 regula a maneira como se apresentam os cidadãos. Manifesta ambição em regular e formatar toda a sociedade de forma “estandardizada”.

Neste artigo, define a forma correcta de andar com o cabelo, que é pequeno, e publica as coimas a aplicar a quem não siga estas indicações e a quem seja reincidente. As coimas não eram meramente simbólicas, mas sim duras: iam do pagamento em dinheiro até à prisão, e em alguns casos poderiam ser aplicados uns acoites. No sentido de reforçar a sua posição, caso não existam denúncias feitas pela população, concede aos funcionários régios competências para tal.

(Citação do Art.º 21) “ Outrossy teemos por bem e mandamos que nenhuu chrispaao do nosso ssenhorio de qualquer stado, ou condiçom, que seia, nom amde esparecido e aquele que acharem andar esparecido pague dez livras por cada hua uez, que o assy acharam e sseia preso, ata que faça o topete. E sse for tal homem que nom aia onde pagar estas dez libras, iasca na prisom dez dias. E sse ata estes dez dias, as nom pagar façam lhy o topete e dem lhy dez açoutes em Concelho pubricamente (…)”

O Art.º 24 mantém o carácter regulador mas afasta-se dos princípios anteriores. Este é um dos artigos que regulam as prostitutas, nomeadamente os vestidos que poderiam comprar por ano (um ou dois) e o tecido de que eram feitos. Proíbe neste segmento da indumentária elementos de ouro e efeitos decorativos de beleza.

(Citação do Art.º 24) “ Outrossy mandamos que nenhua molher de ssegre en todo nosso ssenhorio, nom faça no Anno majs ca huu par de panos daRayz, ou doutro pano de ssa Valia, nem traga ouro nem prata nas cintas, nem adubo nos ueeos nem nas Camjsas.”

O art.º 26, já próximo do final do documento, apresenta uma redacção diferente do padrão anterior e parece cimentar o que foi dito anteriormente.

(Citação do Art.º 26) “ E teemos por bem e Mandamos que cada huu do Poboo de qual quer condiçom que sseia possa acusar os que esta nosa ordinhaçom nom guardarem e leuar a meyadade do que teuer.”

Verifica-se um reforço da liberdade para fazer acusações, podendo os pobres fazer denúncias dos ricos, recebendo na mesma metade da coima a pagar pelo infractor. Este artigo era um claro e evidente incentivo à denúncia de erros por parte das pessoas, tornando cada cidadão polícia de si mesmo e, ao mesmo tempo, polícia de outros cidadãos.

Apesar de estás medidas condicionarem o consumo e estimularem uma melhoria no aspecto das pessoas, é muito provável que não tenham sido implementadas na sua totalidade, porque a nobreza muito rica declinou sempre possíveis alterações aos seus hábitos, quando essas alterações não surgiam de forma natural. Quase sempre é mais fácil fazer as leis do que fazer a sua aplicação: é muito difícil de conseguir.

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