“A cadeira de Teoria da História procura colocar o historiador diante de si mesmo. O historiador tem por oficio fazer a história de pessoas, sociedades, economias, monumentos, países, números, movimentos ou ideias, mas ao longo do semestre procurámos fazer a história dos próprios textos historiográficos e dos seus autores. De conhecimento do passado, o ofício do historiador alarga-se assim a conhecimento desse conhecimento. Questões como a verdade e a objectividade do conhecimento histórico, assim como o relacionamento entre ciência, crítica e ideologia, assumem aqui uma importância renovada. Atendendo ao seu percurso ao longo da licenciatura em História, às suas expectativas iniciais e actuais em relação ao papel do historiador, elabore um texto onde discuta as questões aqui referidas e outras que julgue correlativas”. Responder a esta questão constitui-se um desafio interessante. Não me posso considerar historiador, não sou Licenciado em História, mas sou geógrafo, Licenciado em Geografia e Planeamento Regional. Nesse título, e considerando que a pergunta permite e convida a ultrapassar as fronteiras da história, parece-me interessante perceber, e poder reflectir, sobre questões como verdade e objectividade do conhecimento, com esta duplicidade de raciocínio e de forma transversal ao percurso académico. Penso que inicialmente é preciso definir Teoria da História. Concretamente o que é isto, para além de um nome pomposo atribuído a uma disciplina do plano de estudos da Licenciatura em história? Segundo Santana (2007:99), “a teoria da história é uma das áreas de maior dificuldade de definição, estando associada à epistemologia”, permitindo compreender que se debate sobre o que é o conhecimento, como é que esse pode ser alcançado, ou como esse pode ser defendido do cepticismo. O mesmo autor citando Rüsen (2001:14), escreve que a Teoria da História “sempre foi a base do pensamento histórico em sua versão científica e que, sem a explicitação e a explicação por ela oferecidas, nunca passaria de pressupostos e de fundamentos implícitos”. Martins (2006:4-5), que se perfila em linha de pensamento com o autor anterior, escreve que “a teoria da História é (…) uma vertente da epistemologia das ciências sociais, que se constrói a partir da experiência acumulada de pesquisa empírica na historiografia. Inclui, pois, o inventário analítico dos pressupostos que orientam a pesquisa histórica (…), a sistematização crítica dos procedimentos adoptados nas diversas áreas de aplicação da pesquisa e a crítica dos resultados obtidos, à luz da composição das duas outras variáveis”. Calda (2007:48-49), a propósito de um trabalho sobre o historicismo, dá-nos outra perspectiva do que é a Teoria da História, com a vantagem de que a relaciona com a Filosofia da História e com a Cultura Histórica. Cito: “ (…) se à filosofia da história cabe a investigação do sentido da história através dos tempos, e, muitas vezes, à própria possibilidade real deste sentido, a teoria da história já parte da premissa de que a história é dotada de sentido, ainda que permaneça por esclarecer de que maneiras este sentido torna-se legítimo como escrita e pesquisa. E, se tanto a filosofia da história como a teoria da história, esta mais do que aquela, permanecem atadas ao concerto das ciências, a cultura histórica haverá de mostrar como a vida humana, em várias de suas facetas, é, em si, histórica: biografias, estados psicológicos (luto e culpa, por exemplo), filmes, memória, arquivos, entre outros, são elementos componentes de uma cultura histórica. Estou convencido de que estas três dimensões – as quais poderia ser juntada uma quarta, que aqui não desenvolverei, a saber: a história da historiografia – surgem de própria atividade, e não são artificiais: qual o fim de todas as nossas atividades?” Segundo Malerba (2006:12), foi na viragem do século XVIII para o século XIX que se terá dado o “ (…) maior avanço no campo da Teoria da História, por aqueles que, como Hegel, para chegar a um único e suficiente exemplo, buscaram entender e explicar, de preferência na forma de leis universais, o funcionamento das sociedades e sua evolução no tempo, sua história. Karl Marx talvez seja o exemplo mais emblemático a continuar tal trabalho no século XIX. (…) O século XX fez avençar a reflexão e, da abertura da história às ciências sociais, resultou a revolução na concepção do tempo histórico e na metodologia da disciplina”. Não obstante, diria que o arco cronológico desta disciplina é recente, na medida em que por comparação, a produção trabalhos no âmbito da teoria é menor que a produção historiográfica de histórias nacionais (Caldas, 2007:47). Face ao exposto posso empreender que a Teoria da História remete para as diferentes estruturas de dar forma ao discurso histórico, para a história como ciência social, e põe em causa os próprios historiadores e os objectos que estes escolhem para estudar (dai não ser muito acarinhada), no fundo conduz à análise de inúmeras variáveis que visam, sobretudo, validar ou não os procedimentos explicativos usados pelo historiador, ou passar revista a uma teoria de história, de que são exemplo pela sua expressividade, o Marxismo, o Positivismo, o Historicismo, e o Nacionalismo. Neste seguimento, compreende-se o porque de a teoria colocar o historiador diante de si mesmo. É a existência de subjectividade, de interesses, ideologias ou mentalidades, que promove indagações e faz avançar os estudos de teorias através do escrutínio dos escritos antigos, alargando o horizonte de ofício do historiador, tal como a pergunta o diz, do conhecimento do passado, o ofício do historiador alarga-se assim a conhecimento desse conhecimento. A subjectividade é inerente à condição de ser humano, do historiador, mas influência o traçado do processo histórico. A título de exemplo, e por sugestão da pergunta inicial, enquanto frequência da disciplina de História de Portugal Contemporâneo (séc. XIX), o docente da disciplina, Doutor Paulo Jorge Fernandes, reflectia sobre o facto da primeira metade do século XIX ser mais estudada, por comparação, em ralação à segunda metade do mesmo século. Este deficit de produção historiográfica (do tema e do período histórico especifico) só existe porque o assunto não mereceu muita atenção por parte dos historiadores e por parte dos investigadores, nomeadamente dos mestrandos ou doutorandos, que quando seleccionam o seu objecto de estudo olham para este período da história de Portugal de forma desinteressada, como que se fosse um período obscuro. Contudo, este desinteresse não se deve ao facto de existirem menos fontes documentais que proporcionem documentação histórica para trabalhar, nem se deve ao facto deste período histórico ser pouco interessante ou não ter relevância para a compreensão da história de Portugal, mas sim a uma escolha por parte do historiador, uma escolha que condiciona a Historiografia e que dá azo a afirmações do género: “a produção historiográfica da segunda metade do século XIX é muito reduzida”. No decurso do semestre, em Teoria da História, esta questão foi abordada, nomeadamente no que refere à ideia de História Nacional, abordada pelo texto de Anne-Marie Thiesse (2000); um dos grandes objectos de estudo da Historiografia que passa pela confrontação das várias Histórias Nacionais. A subjectividade do historiador em conjunto com uma grande pluralidade de pensamentos e ideologias, permitiu que sobre o mesmo país, e com recurso quase que à mesma documentação, surgissem diferentes versões da sua História Nacional. A título de exemplo, no âmbito da História Portuguesa, criaram-se várias vias para explicar os fundamentos da expansão ultramarina: por motivações religiosas e militares, ou por motivações económicas e sócias, como defende Vitorino Magalhães Godinho; também o século XIX, já antes mencionado, estava em constante alternância, ora era pensado como um século maldito, ora era pensado como um século de progresso absoluto. A História de Portugal depende muito de quem é o historiador que a está a narrar, motivo pelo qual existem várias versões da mesma. Em muitas outras perspectivas a subjectividade do historiador foi referida ao longo do semestre, principalmente quando se trabalhavam as minorias, tais como: o reduzido (e limitado pelo Homem) espaço que a mulher teve na história apesar da sua dimensão quantitativa; a condição de emigrante, pensado somente no contexto da comunidade de partida (A) ou de chegada (B); a mobilidade, esquecida do pensamento quando esta não pode ser remetida para os espaços A ou B, porque ela própria produz espaço e tempo, ou seja, produz lugares; a condição de refugiado e de apátrida, que leva à exclusão do indivíduo dos direitos de cidadania para além da condição humana, já que ao contrário do emigrante, o apátrida não tem um local onde se insira, e Hannah Arendt aborda no seu trabalho essa ideia de deslocação. O termo de apátrida trabalhado por Arendt mostra o outro lado da “barricada” no seio de uma Alemanha Nazi, onde os historiadores trabalhavam o que era bem visto pelo seu líder (Führer), e ocultavam o que não interessava ao regime, atingindo níveis elevados de subjectividade. Um apátrida é um ser humano sem pátria mãe, logo não lhe são conferidos direitos, e por isso Arendt escreve que a “ (…) própria expressão “direitos humanos” tornou-se para todos os interessados – vítimas, opressores e espectadores – uma prova de idealismo fútil ou de tonta e leviana hipocrisia”. (Arendt, 2004:357). Considero que os historiadores do regime se enquadram perfeitamente na condição de espectadores, bem como toda a população alemã que inicialmente colaborou com as atrocidades de Hitler, nomeadamente através das denúncias às SS. Por oposto à subjectividade estão a verdade e a objectividade do processo histórico, que segundo François Bédarida (2003) [nota 1], representa um dos três pilares fundamentais da construção da teoria da história, e devem ser alvo de procura constate pelo historiador no exercício das suas funções, mesmo sabendo que não conseguiram chegar à verdade absoluta, e que certamente somente se aproximaram dela. Daí Bédarida (2003:223) optar pelo termo “veracidade” em detrimento do termo verdade, justificando que é o mais correcto, e engloba todas as responsabilidades dos historiadores para com os seus objectos de estudo. Bédarida (2003), adepto de uma história totalizante, crítica os modelos que fragmentem e particularizem a História, afirmando que assim a história perde o seu carácter social e passa para um plano individual, reforçando que a história deve estudar os problemas e não os períodos, não considerando correcto o modelo linear de estudo da história. Fontana (1998), historiador espanhol que escreve sobre a história da História, crítica a historiografia e os historiadores pelo reduzido empenho no estudo das lutas sociais contemporâneas, e ainda por não se oporem com firmeza e rigidez à corrente que defende que a humanidade só pode seguir um caminho; o do capitalismo industrial vigente na Europa Ocidental. Estes dois nomes sonantes do mundo da historiografia apresentam duas abordagens semelhantes, que grosso modo vão ao encontro de uma abordagem holística para história, e assim ampliar a sua área de influência, o seu espaço. Já anteriormente referi que as teorias da história não eram muito acarinhadas pelos historiadores, na medida em que são responsáveis pela autocrítica da história, para a problematização dos seus conceitos (Martins, 2006). Santana (2007:100), nessa linha de pensamento, escreve que a História sempre teve imensas “dificuldades em se relacionar com as teorias”, e considerou-as mesmo, um verdadeiro “calcanhar-de-aquiles”. Para este autor, quando a sociologia ascendeu no meio académico europeu atacou a história precisamente neste aspecto, tentando ocupar o seu espaço, o que se comprova nas palavras de Durkheim afirmado que “a história só pode ser considerada uma ciência desde que se eleve acima do individual – e é verdade que, então, deixa de ser ela mesma para tornar-se um ramo da sociologia.” Remontando aos anos 70 do século XIX numa breve retrospectiva, L. Von Ranke (1795-1860), historiador e filósofo da história, justificando que o objecto trabalhado deveria corresponder á realidade, refutou o destaque das leis, e recorreu aos documentos para justificar o facto histórico, dando espaço à emergência da teoria das etapas do método do historiador: heurística, crítica histórica (interna e externa) e síntese ou construção histórica. Neste contexto, no seio dos historiadores mais influentes, tais como Jacques Le Goff (1990), afirma-se que o século XIX é o século da história, porque se conferiu cientificidade à História. Não obstante, torna-se claro que aqui surge uma característica que particulariza a História enquanto ciência autónoma: não creio que nenhum historiador, por mais objectivo que possa ser, consiga se abstrair dos seus próprios interesses, ideais, pensamentos e perspectivas, podendo sim, através da intersubjectividade relacionar vários pensamentos, vários pontos de vista diferentes, mas no fundo, a escolha dos próprios pontos de vista permite essa interferência indirecta nos objectos de estudo. Importa realçar que os historiadores estão deontologicamente e conscientemente obrigados à procura da maior objectividade possível, controlando as suas interpretações, aproximando a realidade histórica da realidade narrada, sem esquecer que a História é um “julgamento”, e que entre a História pura e a pura subjectividade se situa o rigor da crítica e da autocrítica. Concluo citando uma frase histórica de François Rabelais: “Ciência sem consciência é a ruína da alma” (Science sans conscience n'est que ruine de l'âme) [nota 2]. Parece-me uma questão transversal a todas as ciências sociais, e mostra a vulnerabilidade da ciência, enquanto matéria desenvolvida por um Ser com uma única consciência, tanto faz que seja historiador ou geógrafo. [1] Considerava outras duas mestras na génese da teoria da história: uma história totalidade e uma história com a responsabilidade social.
Referências Bibliográficas:
ARENDT, Hannah (2004), «O Declínio do Estado-Nação e o Fim dos Direitos do Homem» in As Origens do Totalitarismo, Dom Quixote, Lisboa, pp. 353-399. A obra está integralmente disponível em
http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_arendt_origens_totalitarismo.pdf, consultada em 20MAR10.
BÉDARIDA, François (2003), Histoire, Critique et Responsabilité, editora Complexes/IHTP, Paris.
CALDAS, Pedro (2007), «As dimensões do historicismo: um estudo dos casos alemães» in Dossiê Teoria da História da Revista OPSIS, editor chefe Valdeci Rezende Borges, vol. 7, nº 9 (jul/dez), pp. 47-66.
FONTANA, Josep (1998), Historia: analise do passado e projeto social, tradução de Luiz Roncari, Editora EDUSC, São Paulo.
LE GOFF, Jacques (1990), História e Memória, tradução Bernardo Leitão, et al., Colecção Repertórios, edição da UNICAMP, São Paulo. Disponível integralmente em http://www.scribd.com/doc/8757274/Historia-e-Memoria-Jacques-Le-Goff, acedido em 16MAI10.
MALERBA, Jurandir (2006) «Teoria e História da Historiografia» in A História Escrita: teoria e história da historiografia, editora Contexto, São Paulo, pp. 11-26.
MARTINS, Estevão (2006), «História e Teoria na Era dos Extremos» in Fênix: Revista de História e Estudos Culturais, Vol. III, N.º 2, edição da Uberlândia, pp. 1-19. Disponível em http://www.revistafenix.pro.br/PDF7/12%20ARTIGO%20ESTEVAO%20MARTINS.pdf, acedido em 16MAI10.
RÜSEN, Jörn (2001), Razão histórica. Teoria da história: Os fundamentos da ciência histórica, tradução de Estevão de Rezende Martins, edição da UnB, Brasília.
SANTANA, Mário (2007), «Em busca da especificidade: considerações sobre a história» in Dossiê Teoria da História da Revista OPSIS, editor chefe Valdeci Rezende Borges, vol. 7, nº 9 (jul/dez), pp. 99-112.
THIESSE, Anne-Marie (2000), «As Histórias Nacionais» in A Criação das Identidades Nacionais, capitulo 6, editora Temas e Debates, Lisboa, pp. 133-156.
NOTAS:
[2] Consultada em http://www.bellamyjc.org/fr/rabelais.html, acedida em 16MAI10.
28/05/10
Teoria da História - Pergunta n.º 4
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