No reinado de Sancho II (rei legitimo até 1245) assistiu-se a uma prioridade da expansão militar. Com grande coragem e valentia, o rei e a ordem militar de Santiago conquistaram todo o Alentejo e parte do Algarve. Todavia, estes feitos foram conseguidos em detrimento da centralização administrativa e da manutenção da justiça e equidade no reino, que deu origem a abusos de poder por parte da nobreza e de outras classes privilegiadas em relação ao povo, e também, a membros do clero (Fernandes, 2004; Letra, 2003; Saraiva, (1993 [1978]).
Face a esta conjuntura, a imagem do monarca que deveria representar a estabilidade, paz e justiça transformou-se num sentimento generalizado de descrédito com maior amplitude no clero e no povo. As reiteradas denúncias de transgressões da nobreza para com os membros do clero (ameaças, diminuição de poderes e bens), levaram a uma primeira bula papal (Inter alia Desiderabilia) emitida pelo papa Inocêncio IV, em Março de 1245, que exigia a Sancho II uma posição para conter a crescente agitação e desordem.
Todavia, esta falha durante o reinado de Sancho II tem várias justificações. Se nos posicionarmos no reinado de Afonso II verificamos que ele foi muito rígido, criou as primeiras leis que visavam a protecção dos bens da coroa, a garantia da liberdade individual e a proibição de abusos por parte dos funcionários régios, ou seja, deu os primeiros passos na protecção das classes populares contra as prepotências dos poderosos (Saraiva, 1993:84 [1978]).
Quando morreu D. Afonso II, o seu filho Sancho II era ainda muito novo, e os barões apoderam-se da situação para se libertarem da estrutura governamental começada por Afonso II[1]; transformaram o reino numa anarquia política, de que é exemplo a inexistência de legislação escrita, falta de registos na chancelaria régia, cessação da exigência das confirmações e das inquirições, e também, frequentes guerras privadas.
Segundo Fernandes (1993 [1978]), esta moldura negra no reinado de Sancho II também era influenciada pelos segundos filhos da nobreza, devido à adopção de um novo sistema de sucessão linguístico[2]. Para a autora, os segundos filhos da nobreza que se sentiam penalizados insurgiam-se, originando uma elevada agitação política e social, para adquirir através da extorsão os bens e direitos que lhes são negados por herança.
Apesar da bula papal, as exigências do papa não foram atendidas, a opressão continuou, e no Concílio de Lyon em Julho de 1245, o mesmo papa, através de uma segunda bula (Grandi Nom Immerito), e sob a acusação de Rex Inutilis, destitui Sancho II e atribui ao seu irmão Infante Afonso, Conde de Bolonha a administração do reino, tendo sido coroado (rei Afonso III) em 1248 após a morte do seu irmão em Toledo, onde se tinha refugiado.
As negociações para que o Conde de Bolonha, então casado com D. Matilde de Bolonha e a viver em França, assumisse o trono de Portugal foram levadas a cabo por bispos e alguns nobres descontentes com o governo de Sancho II.
O conde de Bolonha aceitou a proposta e assinou em paris um documento intitulado de Juramento de Paris, onde se comprometia “…não só a respeitar as imunidades da Igreja, mas a guardar a todas as comunidades e concelhos, cavaleiros e povos os bons costumes e foros escritos e não escritos que vinham do tempo de seu avô e bisavô.”. O documento foi assinado na presença do Arcebispo de Braga e representante do bispo de Coimbra, enviados para o efeito e levando consigo o selo próprio que permitisse a validação do ponto de vista lei.
Afonso III teve sempre muito apoio por parte das massas populares (motivo pelo qual desembarcou em Lisboa, em 1245, sem qualquer exercito), do clero e de alguma nobreza, ainda que reduzida. Após muita resistência de Sancho II, onde se inclui a guerra civil entre os adeptos de ambas as partes, dois anos depois Sancho II foge para Toledo onde viria a morrer um ano depois.
A conjuntura que se verificava na data em que Afonso III subiu ao trono (1248), é por si só uma importante justificação da atitude do monarca, apostando na criação de instituições, com órgãos de Justiça competentes, com princípios e formas de execução Jurídica, iniciando um processo de sistematização das normas de funcionamento do aparelho burocrático-administrativo, dando assim continuidade ao trabalho iniciado com o seu pai, Afonso II.
Os investigadores indicam ser no reinado de Afonso II que surgem os primeiros indícios da criação de leis que visam assegurar a justiça, ou seja, a burocratização administrativa que se assiste no governo de Afonso III. Porém, de acordo com o tipo de leis criadas e a sua importância, entre os autores existem divergências.
Se para Letra (2003:84) “os historiadores relacionam as Cortes de Coimbra[3] de 1211 com a publicação de um importante conjunto de leis que constitui a mais antiga legislação portuguesa” para Fernandes (2004:76) “os especialistas em História de Direito são unânimes em considerar o reinado de Afonso III como o de início do período de recepção do Direito comum e, portanto, do Direito Romano Justinianeu de Portugal”.
No entanto, se existem algumas dúvidas em relação à data especifica que se pode considerar a introdução do Direito Romano, através de leis para regular a acção das pessoas, os seus bens e tributos fiscais, não existe nenhuma dúvida em relação à dificuldade que foi para a população interiorizar o novo sistema e adaptar-se a ele.
Em áreas interiores, onde todos os assuntos eram resolvidos de forma oral, através da palavra de homem para homem, quando os funcionários régios introduzem a escrita muitos dos bens existentes são retirados à população para o rei porque estes não tem como provar, de forma escrita, que são seus.
O rei para tornar a justiça mais íntegra criou os denominados “oficiais do rei”; juízes que residiam próximo do rei. Os “oficiais do rei” distinguiam-se dos restantes funcionários régios porque não tinham qualquer contacto ou relação de parentesco com as pessoas que iriam sentenciar em tribunal. Esta medida visava tornar os julgamentos e outras acções de justiça menos tendenciosos e mais equilibradas.
A mão pesada de Afonso III vai fazer reduzir o poder senhorial, ainda que a tarefa nunca se diga ser fácil, através da cessação da monarquia feudal para passar para um regime de poder monárquico central, onde o rei é o representante máximo da justiça, e terá que passar por ele todas as decisões do reino. O rei é considerado justo, as pessoas que lá vivem consideram-se seguras por não viverem num clima de instabilidade e opressão, de acordo com de Letra (1993:87).
“Em 1258 foram ordenadas inquirições gerais cujos resultados serviam de base a uma vasta obra de reorganização administrativa. Os abusos dos nobres sobre os vilãos foram reprimidos, as garantias municipais robustecidas. Diz a crónica de 1419: «…manteve [o rei] a sua fazenda em grande regra, e o reino em muita justiça e assossego. E corregeu a terra, que estava muito estragada do tempo do seu irmão, el-rei D. Sancho Capelo.»”.
Todas as acções de Afonso III vieram a revelar-se positivas no reinado do seu filho, D. Dinis, devido ao aperfeiçoamento da máquina administrativa do Estado, e também, ao desenvolvimento das actividades económicas.
Referências Bibliográficas:
FERNANDES, Fátima (2004), A recepção do Direito Romano no Ocidente Europeu Medieval: Portugal, um caso de afirmação régia, Revista de História: Questões & Debates, Curitiba, Editora UFPR, Brasil, pág. 73-83.
LETRA, Carlos (2003), História Cronológica do meu Portugal, Edições Gailivro Lda, Lisboa.
SARAIVA, José Hermano (1993 [1978]), História Concisa de Portugal, Publicações Europa-América, 16ª Ed., Lisboa, pág. 73-94.
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[1] D. Afonso II através da criação de um conjunto de leis regulou a propriedade privada, o direito civil e a cunhagem de moeda.
[2] Em Portugal desde o século XI verifica-se um crescimento demográfico e uma melhoria geral das condições climáticas e das técnicas de produção agrícola. Como a propriedade da nobreza estava concentrada no Norte, as famílias nobres estavam a crescer cada vez mais e a dispor de uma menor concentração de territórios sobre o seu controlo directo porque utilizavam o sistema de sucessão cognática que consiste na partilha de herança entre todos os filhos. No decorrer do séc. XIV no sentido de solucionar esta situação, os nobres passam a adoptar um sistema de sucessão linguístico, que privilegia o varão mais velho em detrimento dos segundos filhos.
[3] Foram as primeiras cortes realizadas que dispõem de informação escrita que chegou aos nossos dias (Saraiva, 1993: 84).