28/05/10

Teoria da História - Pergunta n.º 3

“Qual o sentido dos acontecimentos históricos? Entre outras, podemos situar três tipos de resposta à pergunta. De acordo com várias concepções religiosas, o que acontece historicamente obedece a uma vontade divina que estará situada superiormente em relação ao próprio processo histórico ao qual essa vontade conferirá sentido. Já outras concepções recusam a ideia de que o processo histórico possa ser o resultado de qualquer vontade superior ou exterior ao próprio processo; este é o caso de concepções hegelianas, para as quais a História guarda em si mesmo um fim (um sentido) que se irá revelando através do seu próprio desenvolvimento ao longo do tempo. Por fim, no decorrer do século XX, afirmam-se concepções que colocam em causa a ideia de que o processo histórico está determinado por uma lógica, por uma razão, por uma lei ou por um sentido, e que chamam a nossa atenção para o que consideram exceder leituras historiográficas cujo objectivo é aferir – reconhecer e dar conta de – uma tal lógica, razão, lei ou sentido. A partir destas diversas perspectivas, e de outras que entenda pertinentes, comente a pergunta que inicia este terceiro ponto”.


Para introduzir esta pergunta tenho de referir a Antiguidade Clássica, como “a mãe da historiografia”, e Heródoto, que entre 485-425 a.C. escreveu Histórias [nota 1], valendo-lhe actualmente o título de “Pai da História”; o que se justifica pela procura de um sentido para a História, não se limitando a narrar factos, aliás, dá aos factos uma perspectiva de conjunto, ordenada, objectiva, com um sentido profundo, interpretativa e o mais fiel possível à realidade da época.

Na Idade Média o cristianismo vai influenciar os historiadores, agregando-se á historiografia, numa relação em que se cruza o tempo mítico com o tempo histórico. Por exemplo, Eusébio de Cesareia, entre 260 – 270/340, produziu a obra História Eclesiástica, na língua grega, que é fundamental para o conhecimento da história do cristianismo; obra que seria traduzida para o Latim, por São Gerónimo, na segunda metade do século IV.

Santo Agostinho (c. 354-430) foi um dos autores eruditos dos primeiros séculos da Igreja, e na sua obra historiográfica/filosófica, intitulada De Civitate Dei (sobre a cidade de Deus), aborda as concepções da historiografia, que são claramente controladas pelo Cristianismo [nota 2]. Para o autor, a providência divina estabelece o rumo da história, em prol de um Deus, único e omnipotente, que tudo pode, e no capítulo XXI da obra, indica que é a religião que legítima, tanto o Cristianismo como a História, ou seja, confere sentido ao processo histórico, tal como é indagado na pergunta inicial.

Até ao século XI, no Ocidente, toda a produção historiográfica é tida quase que em monopólio pela Igreja, e durante toda a Idade Média a única concepção que vinga é a religiosa, com Deus no topo da hierarquia, tendo sido ele quem concebeu o mundo à sua imagem e semelhança, pelo que tudo tem que obedecer à vontade divina, ainda que essa seja uma interpretação puramente térrea/humana.

Catroga (2003:25), a propósito da ideia de tempo construída pelos pensadores cristãos, onde se integra Santo Agostinho, fornece a ideia do longo caminho a percorrer para a salvação humana, desse máximo que é Deus, assente numa lógica de passado, presente e futuro, como que fosse linear esta passagem:
“Com efeito, o cristianismo, ainda que no âmbito de uma história da salvação, ordenou as eras e as idades segundo uma lógica em que o passado surgia como preparação, o presente como revelação e o futuro como consumação (...) e é indiscutível que a história, enquanto teofania, pôs em cena uma certa racionalização do trajecto da “cidade dos homens”. Daí, o seu cariz providencialista, cujo momento teórico maior se encontra em Santo Agostinho, embora pensadores como Eusébio de Cesareia o houvessem preparado. Posteriormente, Paulo Orósio e uma vasta galeria de continuadores do modelo, durante toda a Idade Média e os primórdios da modernidade, farão dele o Deus ex machina da aparente caoticidade dos acontecimentos históricos, conferindo um sentido religioso e providencialista ao transcurso do tempo (...)”.

Do ponto de vista religioso, as várias concepções religiosas procuram a salvação através da verdade absoluta, que é a palavra de Deus. Neste seguimento, creio que então não existe subjectividade na História, na medida em que o historiador é um elemento que permite chegar a verdade absoluta, mas essa pertence a Deus, logo está correcta e é inquestionável.

Do ponto de vista religioso existem duas grandes concepções: visão ocidental e visão oriental. A primeira, pauta-se por uma visão linear da história, tem um começo e terá um fim, o mundo foi criado num certo ponto e terá um dia que terminar, e a segunda, uma visão cíclica da história, acredita que a história se repete num ciclo eterno, e o mundo dura de eternidade em eternidade.

Albert Einstein aproxima-se da visão ocidental, já que não acredita no acaso mas acreditava na providência. Para este grande físico tudo estava predeterminado, com começo e fim, e os seres humanos, animais, plantas, ar, terra ou água, funcionavam segundo uma matriz misteriosa, dirigida por alguém distante, perdido no universo, impossível de chegar ou de interpretar.

Por outro lado, para Hegel, que curiosamente as suas primeiras reflexões incidem sobre o espírito do judaísmo e do cristianismo e revelam preocupações históricas e religiosas, a lógica manifesta-se no processo histórico, pelo que a história não é mais que a manifestação da razão. A História é cenário de oposições, resultado da contradição, e o sucesso depende da estrutura: tese, antítese, síntese, o que justifica que a grande novidade de Hegel seja mesmo a lógica[nota 3].

O hegelianismo é a antítese do pensamento das correntes religiosas, na medida em que a ordem estabelecida não retrata o plano do divino, na procura da salvação, mas sim a racionalidade imanente do próprio processo histórico, conforme a citação: “ (…) na história do mundo as coisas aconteceram racionalmente” (Hegel, 2001: 53). Na verdade, os pensamentos filosóficos hegelianos “perseguem” o propósito, o objectivo ou a finalidade, comandados pela razão. Não obstante, Hegel não era contra a religião. Muito pelo contrário.

Ao contrário de Santo Agostinho, como vimos atrás, razão e a religião pertencem integrados, à compreensão intelectual, à erudição, à possibilidade de conhecer, evoluindo assim da interpretação teológica para a interpretação lógica. Hegel vê em Deus a razão absoluta, ou melhor, a lógica do mundo reside no facto de Deus ser a razão.

Devemos considerar que os escritos de Hegel são fruto do período em que foram esboçados, neste caso o autor vivenciou a Revolução Francesa, onde a Burguesia triunfou, vencendo a nobreza e o clero, criando uma nova ordem social e racional, com fundamento nos anseios humanos e não nas tradições ou crenças religiosas. Neste contexto, a análise possível é mesmo essa: a razão do Homem produziu a sua libertação, ou melhor, foi a razão da Burguesia que triunfou porque era detentora da razão, e porque as suas ideias eram as mais válidas para harmonizar as estruturas sociais, económicas e políticas, viabilizando a realidade económica pelo qual lutavam.

Para Hegel (2001:77), “ (…) o indivíduo não cria o seu conteúdo, ele é o que é, expressando tanto o conteúdo universal quanto o seu próprio conteúdo”, e o mundo é constituído por: Lógica (razão), Natureza (necessidade) e Espírito (liberdade), conforme esquema ao lado [nota 4].

Respondendo directamente há pergunta inicial, Hegel trabalha uma filosofia sistémica, e assim o seu pensamento é totalizante, absoluto, projecta uma consciência critica que, pela reflexão, dilata o processo de formação do Ser Humano e do conhecimento.

Para Hegel o historiador apresenta a narrativa histórica de acordo com uma continuidade, e sabe que há ideia de um princípio de reconhecimento; não defende que toda a História é racional mas sim que toda a História é fruto da “astúcia da razão” e, nesse sentido, se há uma Razão imanente, compete ao historiador reconhecer essa razão.

Mas, como é que o princípio de reconhecimento da Razão se concilia com o princípio da contradição? Esta é uma luta que faz com que a História evolua, de etapa em etapa, de síntese em síntese. Reconhecer uma contradição pressupõe que nos coloquemos, desde logo, numa perspectiva de síntese. Trata-se de ir reconhecendo a sucessão de sínteses e, através dela, a Razão imanente à História. É, exactamente, a contradição entre os meios que levará a um fim, com base na astúcia da Razão.

Para Hegel (2001:52), pioneiro na filosofia da história, a História devia unir-se à filosofia, apesar de considerar isso difícil devido a uma aparente contrariedade, em relação à factualidade da História versus a especulação da Filosofia, conforme citação:
“na história, o pensamento está subordinado aos dados da realidade, que mais tarde servem como guia e base para os historiadores. Por outro lado, afirma-se que a filosofia produz suas idéias a partir da especulação, sem levar em conta os dados fornecidos. Se a filosofia abordasse a história com tais idéias, poder-se-ia sustentar que ela ameaçaria a história como sua matária-prima, não a deixando como é, mas moldando-a conforme essas idéias, contruindo-a, por assim dizer, a priori. Mas, como se supõe que a história compreenda os acontecimentos e ações apenas pelo que são e foram e que, quanto mais factual, mais verdadeira ela é, parece que o método da filosofia estaria em contradição com a função da história.”

A sistematização do conhecimento histórico no decorrer do século XIX, definiu o historiador como um elemento que organizava e catalogava o passado, não recriando esse passado em função da sua visão contemporânea, presente, mas apresentando-o à sociedade sem interferência ou presença nessa realidade descrita.

Para De Certeau (1995:224), jesuíta e erudito francês, o que importa é a dicotomia entre o passado e o presente, e nesta base, fazendo o historiador parte do presente, em plena consciência das preocupações da realidade que vive, não se pode falar de uma verdade, mas de várias verdades.

Santos (2007:83), de forma fundamentada, define a história actualmente mais ligada a reflexão entre o passado e o presente, do que ao estudo do passado, conforme citação: “ (…) não se busca mais uma veracidade inquestionável, mas antes uma compreensão de como o passado, aquele vivido e sobrevivido em documentos e monumentos (LE GOFF, 1994), rastros (RICOEUR, 1997), sinais (GINZBURG, 1989) e mesmo lugares de memória (NORA, 1993) se mostram ainda como espaços privilegiados de uma compreensão do presente”.

A falência dos modelos analíticos como o Marxismo e o Estruturalismo e a ascensão da Nouvelle Histoire estimularam o aparecimento de múltiplas abordagens, métodos e alianças interdisciplinares que pareceram, para alguns, o estilhaçamento dos métodos e da História, e até mesmo o seu fim, como forma de conhecimento específico. (Dosse, 1989).

A posição dos Annales, designada em 1978 por Jacques Le Goff, como Nova História, não se definia mais como uma escola francesa, pois o seu prestígio e alcance incorporavam historiadores de outros países, como Natalie Davis ou Robert Darnton.

A insistência dos Analles em estudar a economia e a sociedade, descentralizou a própria história institucional, e com ela, o Estado. Tal promove toda uma forma de encarar o espaço, trazendo para dentro da história, um conjunto imenso de sujeitos que anteriormente só eram objecto, interessando-se pelas classes sociais menos abastadas e numericamente mais significativas. Por seu turno, no domínio da história económica, permite constatar a profunda dinâmica que os movimentos de comércio adquirem com o tempo, não se vendo tanto as fronteiras nacionais. Há também um alargamento do tempo, perante uma preocupação com a longa duração.

Este alargamento do número de pessoas é problemático, levantando a seguinte questão: o que entendemos por sujeito histórico? No meio historiográfico, por vicissitudes do debate histórico, antes da questão da globalização existia já um debate relativo ao futuro das nações, associado aos Analles, sendo que este depois se alastrou a uma concepção individual ou colectivista do processo histórico.

Em 1988, os Annales reconhecem que o modelo da “Nova História” está em risco, devido à ausência de paradigmas explicativos da realidade.

Face às tendências actuais da historiografia, fala-se na “crise” da História. De facto, surge a consciência que existe uma história total, mas também uma microstorie (microhistória), em que o estudo do personagem individual tem o mesmo valor para o indivíduo A, B, ou C, onde a escala de observação da realidade é mais reduzida, considerada até microscópica, aproxima-se mais do método de pesquisa do que do debate teórico, tem em comum com a História o género narrativo, portanto descritivo, e neste sentido, possui um diálogo permanente com a descrição antropológica.

Na segunda metade da década de 80, Carlo Ginzburg escreve uma obra que ficou conhecida como um dos mais importantes estudos da microhistória, onde analisa o processo inquisitório, precedido por uma contextualização fundamentada do período histórico em estudo, do espaço e do tempo [nota 5]. (Ginzburg, 1987).

Não obstante, a história totalizante tem muita força, comprovada ao longo dos tempos, desde a história transcendental de Bossuet no século XVII, da filosofia de Kant, que indica que o historiador deve “agarrar e analisar” a história como um todo, sem ter a preocupação de estabelecer leis universais, ou mais recentemente, da “Escola” dos Annales, que procurava uma História totalizante compreendendo o Homem na plenitude do seu viver. (Bossuet, 1966).

Aliás, Kant nas suas filosofias defende que se deve perceber a História como um tempo imanente, na medida em que o ser divino, ou a força divina, que comanda a vida, pode interceder e influenciar, muito ligado ao que já referi anteriormente. Neste contexto, o autor distingue Transcendental de Transcendente, relacionando o primeiro com o plano superior, do divino, e o segundo, com a imanência, ou seja, a possibilidade de o historiador transcender o tempo em que se encontra. Em suma, para Kant, o historiador é o responsável pela moldura da realidade, e mesmo não alterando a realidade que retrata, pode alterar a representação dessa mesma realidade, em virtude do historiador não se encontrar isolado, mas sim inserido numa determinada realidade ou contexto.
A título de comparação, Leopold von Ranke, grande erudito do historicismo alemão, também “adepto” de uma história total, não partilhava totalmente da mesma opinião de Kant, na medida em que para este historiador, cabia à História apresentar os acontecimentos passados exactamente como eles se passaram, procurando eliminar o erro através da crítica histórica, da confiança e intuição do historiador, tornando a História inquestionável, e assim fiel depositária da verdade absoluta.

A historiografia actualmente apresenta várias tendências. Martins (2002), destaca duas tendências dominantes: a microhistória; a nova história cultural, que têm relação explícita com as diversas ideias e posições do pós-modernismo. De forma cumulativa, Lloyd (1995), destaca a ciência história sócio-cultural, como uma tendência mais abrangente, mais totalitária e transversal às duas anteriores, formada por: ciência, história, sociedade e cultura. Não obstante, Martins (2002) reconhece a influência da cultural turn no processo histórico, o que diz representar uma nova concepção teórica abrangente da história como ciência integradora de factores de constituição da identidade subjectiva e objectiva dos agentes racionais: humanos, individuais e colectivos. A grande variedade das tendências historiográficas que se verificam na actualidade, têm fundamentos em correntes fortes do passado, por exemplo, nos Annales, no positivismo, no Romantismo, entre outras.

Recentemente, na segunda metade dos anos 80 do século XX, emergiu o pós-modernismo, trazendo consigo para dentro da História indagações sobre temas como, a validade do método histórico, os limites entre a verdade e a ficção, e reconduziu para o centro dos debates a questão da escrita da História; arbitrariedade que é criticada, por exemplo, por José Mattoso (2002).

A proliferação de correntes pode conduzir a uma “miscigenação”, e pode desacreditar a história como uma disciplina de rigor científico, transformando-a numa história de historietas, de efabulação, de mitos ou contos sem fundamento. A literatura tem um lugar no mercado através do romance ficcionado, e a história também tem o seu espaço no mercado, através da produção científica, pelo que as duas têm potencial para sobreviver sem se “atropelarem”, mesmo verificando-se que as massas populacionais demonstram mais interesse em romances históricos ficcionados, sem rigor científico. (Martins, 2002).

Tal como diz o antropólogo Balandier (1997), estamos perante um período onde escasseiam os caminhos e onde abundam as incertezas, momento óptimo para reflectir sobre o que é que significa a ausência de correntes dominantes.

Apesar da aparente indefinição continuam a proliferar cada vez mais publicações, diversificados em conteúdos e em qualidade, o torna legítimo pensar positivo, e perspectivar uma crescente tendência na melhoria do consumo de massas da produção histórica, até porque verifica-se o recrudescimento da Biografia, da Historia Religiosa e da Arqueologia.

Para terminar, e retomando á pergunta inicial, “existe um sentido para os acontecimentos históricos ou não?”, pergunta que o filósofo italiano Remo Bodei também colocou e tentou responder na sua obra, concluo que cada orientação historiográfica responde de modo diferente a esta pergunta, fruto do conhecimento do passado e das influências a que estão sujeitos os historiadores num mundo globalizante, com temáticas universalmente aceites. Tal como Bodei (2001:15) diz, e que pessoalmente concordo, existe a necessidade de redefinir, de tempos em tempos, modelos de interpretação das sociedades, para que estes se mantenham adequados à evolução das sociedades, e nesta base, o problema foi pensar que de facto a história tinha sentido. Não obstante, e mais uma vez concordando e considerando positivo o pensamento do autor, até pode existir um sentido no processo histórico, neste caso um sentido influenciado pelas várias orientações formuladas, mesmo que seja um sentido que não direccione a humanidade, mas o que importa, e em que Bodei acredita, é no progresso material e espiritual, a razão concreta para a continuação dos homens e das sociedades. (Bodei, 2001).


Referências Bibliográficas:

BALANDIER, George (1997), O Contorno: poder e modernidade, edição Bertrand Brasil, Rio de Janeiro.

BODEI, Remo (2001), A história tem um sentido?, editora da Universidade do Sagrado Coração, São Paulo. Tradução de Reginaldo Di Piero.

BOSSUET, Jacques-Bénigne (1966), Discours sur L'histoire Universelle, editora Flammarion, Paris.

CATROGA, Fernando (2003), «Fim da História ou das Filosofias do Fim da História», in Caminhos do fim da história, editora Quarteto, Lisboa.

DOSSE, François (1989), A História em Migalhas, edição da Unicamp, São Paulo.

GINZBURG, Carlo (1987), O queijo e os vermes - o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição, Companhia das Letras, São Paulo.

HEGEL, Georg (2001), A Razão na História – Uma Introdução geral à Filosofia da História, Tradução de Beatriz Sidou, edição Centauro, São Paulo.

LLOYD, Christopher (1995), As Estruturas da História, edição Jorge Zahar, Rio de Janeiro.

MARTINS, Estêvão (2002), Cultura e Poder, edição da IBRI/FUNAG, Brasília.

MATTOSO, José (2002), «Arte ou Ciência» in Obras Completas, 10 – A escrita da História, Circulo de Leitores, Lisboa, p. 22.

SANTOS, Márcia (2007), «História e Memória: desafios de uma relação teórica», in Revista OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007, Revista do Departamento de História e Ciências Sociais/Universidade Federal de Goiás, pp. 81-97.




NOTAS:


[1]
Obra de Heródoto, dividida em nove livros desde a época helenística. São inquéritos (primeiro sentido da palavra historiai) sobre as guerras médicas e os povos que nelas se envolveram.
[2]
A cristianização da História, nas suas várias manifestações de interesse, procurava: redacção da sua própria história; correspondência entre cronologias bíblicas e a história; aprofundamento de conhecimentos do passado, para polemizar os filósofos pagãos; e recurso a interpretação global da história (origem de Adão e depois de Eva).
[3]
Hegel nunca mencionou termos como tese, síntese e antítese. Contudo, em virtude dos termos específicos serem demasiado complexos e ser mais cómodo e simples, optei por estes termos que foram os utilizados nas aulas ao longo do semestre.
[4]
Esquema retirado de http://www.hegel.net/br/b3333333.htm, em 24MAI10.
[5]
Esta obra é uma narrativa interessante, trabalha sobre a vida, o quotidiano e julgamento de um moleiro italiano, chamado Domenico Scandella.



Teoria da História - Pergunta n.º 4

“A cadeira de Teoria da História procura colocar o historiador diante de si mesmo. O historiador tem por oficio fazer a história de pessoas, sociedades, economias, monumentos, países, números, movimentos ou ideias, mas ao longo do semestre procurámos fazer a história dos próprios textos historiográficos e dos seus autores. De conhecimento do passado, o ofício do historiador alarga-se assim a conhecimento desse conhecimento. Questões como a verdade e a objectividade do conhecimento histórico, assim como o relacionamento entre ciência, crítica e ideologia, assumem aqui uma importância renovada. Atendendo ao seu percurso ao longo da licenciatura em História, às suas expectativas iniciais e actuais em relação ao papel do historiador, elabore um texto onde discuta as questões aqui referidas e outras que julgue correlativas”.


Responder a esta questão constitui-se um desafio interessante. Não me posso considerar historiador, não sou Licenciado em História, mas sou geógrafo, Licenciado em Geografia e Planeamento Regional. Nesse título, e considerando que a pergunta permite e convida a ultrapassar as fronteiras da história, parece-me interessante perceber, e poder reflectir, sobre questões como verdade e objectividade do conhecimento, com esta duplicidade de raciocínio e de forma transversal ao percurso académico.

Penso que inicialmente é preciso definir Teoria da História. Concretamente o que é isto, para além de um nome pomposo atribuído a uma disciplina do plano de estudos da Licenciatura em história?

Segundo Santana (2007:99), “a teoria da história é uma das áreas de maior dificuldade de definição, estando associada à epistemologia”, permitindo compreender que se debate sobre o que é o conhecimento, como é que esse pode ser alcançado, ou como esse pode ser defendido do cepticismo. O mesmo autor citando Rüsen (2001:14), escreve que a Teoria da História “sempre foi a base do pensamento histórico em sua versão científica e que, sem a explicitação e a explicação por ela oferecidas, nunca passaria de pressupostos e de fundamentos implícitos”.

Martins (2006:4-5), que se perfila em linha de pensamento com o autor anterior, escreve que “a teoria da História é (…) uma vertente da epistemologia das ciências sociais, que se constrói a partir da experiência acumulada de pesquisa empírica na historiografia. Inclui, pois, o inventário analítico dos pressupostos que orientam a pesquisa histórica (…), a sistematização crítica dos procedimentos adoptados nas diversas áreas de aplicação da pesquisa e a crítica dos resultados obtidos, à luz da composição das duas outras variáveis”.

Calda (2007:48-49), a propósito de um trabalho sobre o historicismo, dá-nos outra perspectiva do que é a Teoria da História, com a vantagem de que a relaciona com a Filosofia da História e com a Cultura Histórica. Cito: “ (…) se à filosofia da história cabe a investigação do sentido da história através dos tempos, e, muitas vezes, à própria possibilidade real deste sentido, a teoria da história já parte da premissa de que a história é dotada de sentido, ainda que permaneça por esclarecer de que maneiras este sentido torna-se legítimo como escrita e pesquisa. E, se tanto a filosofia da história como a teoria da história, esta mais do que aquela, permanecem atadas ao concerto das ciências, a cultura histórica haverá de mostrar como a vida humana, em várias de suas facetas, é, em si, histórica: biografias, estados psicológicos (luto e culpa, por exemplo), filmes, memória, arquivos, entre outros, são elementos componentes de uma cultura histórica. Estou convencido de que estas três dimensões – as quais poderia ser juntada uma quarta, que aqui não desenvolverei, a saber: a história da historiografia – surgem de própria atividade, e não são artificiais: qual o fim de todas as nossas atividades?”

Segundo Malerba (2006:12), foi na viragem do século XVIII para o século XIX que se terá dado o “ (…) maior avanço no campo da Teoria da História, por aqueles que, como Hegel, para chegar a um único e suficiente exemplo, buscaram entender e explicar, de preferência na forma de leis universais, o funcionamento das sociedades e sua evolução no tempo, sua história. Karl Marx talvez seja o exemplo mais emblemático a continuar tal trabalho no século XIX. (…) O século XX fez avençar a reflexão e, da abertura da história às ciências sociais, resultou a revolução na concepção do tempo histórico e na metodologia da disciplina”. Não obstante, diria que o arco cronológico desta disciplina é recente, na medida em que por comparação, a produção trabalhos no âmbito da teoria é menor que a produção historiográfica de histórias nacionais (Caldas, 2007:47).

Face ao exposto posso empreender que a Teoria da História remete para as diferentes estruturas de dar forma ao discurso histórico, para a história como ciência social, e põe em causa os próprios historiadores e os objectos que estes escolhem para estudar (dai não ser muito acarinhada), no fundo conduz à análise de inúmeras variáveis que visam, sobretudo, validar ou não os procedimentos explicativos usados pelo historiador, ou passar revista a uma teoria de história, de que são exemplo pela sua expressividade, o Marxismo, o Positivismo, o Historicismo, e o Nacionalismo. Neste seguimento, compreende-se o porque de a teoria colocar o historiador diante de si mesmo. É a existência de subjectividade, de interesses, ideologias ou mentalidades, que promove indagações e faz avançar os estudos de teorias através do escrutínio dos escritos antigos, alargando o horizonte de ofício do historiador, tal como a pergunta o diz, do conhecimento do passado, o ofício do historiador alarga-se assim a conhecimento desse conhecimento.

A subjectividade é inerente à condição de ser humano, do historiador, mas influência o traçado do processo histórico. A título de exemplo, e por sugestão da pergunta inicial, enquanto frequência da disciplina de História de Portugal Contemporâneo (séc. XIX), o docente da disciplina, Doutor Paulo Jorge Fernandes, reflectia sobre o facto da primeira metade do século XIX ser mais estudada, por comparação, em ralação à segunda metade do mesmo século. Este deficit de produção historiográfica (do tema e do período histórico especifico) só existe porque o assunto não mereceu muita atenção por parte dos historiadores e por parte dos investigadores, nomeadamente dos mestrandos ou doutorandos, que quando seleccionam o seu objecto de estudo olham para este período da história de Portugal de forma desinteressada, como que se fosse um período obscuro. Contudo, este desinteresse não se deve ao facto de existirem menos fontes documentais que proporcionem documentação histórica para trabalhar, nem se deve ao facto deste período histórico ser pouco interessante ou não ter relevância para a compreensão da história de Portugal, mas sim a uma escolha por parte do historiador, uma escolha que condiciona a Historiografia e que dá azo a afirmações do género: “a produção historiográfica da segunda metade do século XIX é muito reduzida”.

No decurso do semestre, em Teoria da História, esta questão foi abordada, nomeadamente no que refere à ideia de História Nacional, abordada pelo texto de Anne-Marie Thiesse (2000); um dos grandes objectos de estudo da Historiografia que passa pela confrontação das várias Histórias Nacionais. A subjectividade do historiador em conjunto com uma grande pluralidade de pensamentos e ideologias, permitiu que sobre o mesmo país, e com recurso quase que à mesma documentação, surgissem diferentes versões da sua História Nacional. A título de exemplo, no âmbito da História Portuguesa, criaram-se várias vias para explicar os fundamentos da expansão ultramarina: por motivações religiosas e militares, ou por motivações económicas e sócias, como defende Vitorino Magalhães Godinho; também o século XIX, já antes mencionado, estava em constante alternância, ora era pensado como um século maldito, ora era pensado como um século de progresso absoluto. A História de Portugal depende muito de quem é o historiador que a está a narrar, motivo pelo qual existem várias versões da mesma.

Em muitas outras perspectivas a subjectividade do historiador foi referida ao longo do semestre, principalmente quando se trabalhavam as minorias, tais como: o reduzido (e limitado pelo Homem) espaço que a mulher teve na história apesar da sua dimensão quantitativa; a condição de emigrante, pensado somente no contexto da comunidade de partida (A) ou de chegada (B); a mobilidade, esquecida do pensamento quando esta não pode ser remetida para os espaços A ou B, porque ela própria produz espaço e tempo, ou seja, produz lugares; a condição de refugiado e de apátrida, que leva à exclusão do indivíduo dos direitos de cidadania para além da condição humana, já que ao contrário do emigrante, o apátrida não tem um local onde se insira, e Hannah Arendt aborda no seu trabalho essa ideia de deslocação.

O termo de apátrida trabalhado por Arendt mostra o outro lado da “barricada” no seio de uma Alemanha Nazi, onde os historiadores trabalhavam o que era bem visto pelo seu líder (Führer), e ocultavam o que não interessava ao regime, atingindo níveis elevados de subjectividade. Um apátrida é um ser humano sem pátria mãe, logo não lhe são conferidos direitos, e por isso Arendt escreve que a “ (…) própria expressão “direitos humanos” tornou-se para todos os interessados – vítimas, opressores e espectadores – uma prova de idealismo fútil ou de tonta e leviana hipocrisia”. (Arendt, 2004:357). Considero que os historiadores do regime se enquadram perfeitamente na condição de espectadores, bem como toda a população alemã que inicialmente colaborou com as atrocidades de Hitler, nomeadamente através das denúncias às SS.

Por oposto à subjectividade estão a verdade e a objectividade do processo histórico, que segundo François Bédarida (2003) [nota 1], representa um dos três pilares fundamentais da construção da teoria da história, e devem ser alvo de procura constate pelo historiador no exercício das suas funções, mesmo sabendo que não conseguiram chegar à verdade absoluta, e que certamente somente se aproximaram dela. Daí Bédarida (2003:223) optar pelo termo “veracidade” em detrimento do termo verdade, justificando que é o mais correcto, e engloba todas as responsabilidades dos historiadores para com os seus objectos de estudo.

Bédarida (2003), adepto de uma história totalizante, crítica os modelos que fragmentem e particularizem a História, afirmando que assim a história perde o seu carácter social e passa para um plano individual, reforçando que a história deve estudar os problemas e não os períodos, não considerando correcto o modelo linear de estudo da história.

Fontana (1998), historiador espanhol que escreve sobre a história da História, crítica a historiografia e os historiadores pelo reduzido empenho no estudo das lutas sociais contemporâneas, e ainda por não se oporem com firmeza e rigidez à corrente que defende que a humanidade só pode seguir um caminho; o do capitalismo industrial vigente na Europa Ocidental.

Estes dois nomes sonantes do mundo da historiografia apresentam duas abordagens semelhantes, que grosso modo vão ao encontro de uma abordagem holística para história, e assim ampliar a sua área de influência, o seu espaço.

Já anteriormente referi que as teorias da história não eram muito acarinhadas pelos historiadores, na medida em que são responsáveis pela autocrítica da história, para a problematização dos seus conceitos (Martins, 2006).

Santana (2007:100), nessa linha de pensamento, escreve que a História sempre teve imensas “dificuldades em se relacionar com as teorias”, e considerou-as mesmo, um verdadeiro “calcanhar-de-aquiles”. Para este autor, quando a sociologia ascendeu no meio académico europeu atacou a história precisamente neste aspecto, tentando ocupar o seu espaço, o que se comprova nas palavras de Durkheim afirmado que “a história só pode ser considerada uma ciência desde que se eleve acima do individual – e é verdade que, então, deixa de ser ela mesma para tornar-se um ramo da sociologia.”

Remontando aos anos 70 do século XIX numa breve retrospectiva, L. Von Ranke (1795-1860), historiador e filósofo da história, justificando que o objecto trabalhado deveria corresponder á realidade, refutou o destaque das leis, e recorreu aos documentos para justificar o facto histórico, dando espaço à emergência da teoria das etapas do método do historiador: heurística, crítica histórica (interna e externa) e síntese ou construção histórica. Neste contexto, no seio dos historiadores mais influentes, tais como Jacques Le Goff (1990), afirma-se que o século XIX é o século da história, porque se conferiu cientificidade à História. Não obstante, torna-se claro que aqui surge uma característica que particulariza a História enquanto ciência autónoma: não creio que nenhum historiador, por mais objectivo que possa ser, consiga se abstrair dos seus próprios interesses, ideais, pensamentos e perspectivas, podendo sim, através da intersubjectividade relacionar vários pensamentos, vários pontos de vista diferentes, mas no fundo, a escolha dos próprios pontos de vista permite essa interferência indirecta nos objectos de estudo. Importa realçar que os historiadores estão deontologicamente e conscientemente obrigados à procura da maior objectividade possível, controlando as suas interpretações, aproximando a realidade histórica da realidade narrada, sem esquecer que a História é um “julgamento”, e que entre a História pura e a pura subjectividade se situa o rigor da crítica e da autocrítica.

Concluo citando uma frase histórica de François Rabelais: “Ciência sem consciência é a ruína da alma” (Science sans conscience n'est que ruine de l'âme) [nota 2]. Parece-me uma questão transversal a todas as ciências sociais, e mostra a vulnerabilidade da ciência, enquanto matéria desenvolvida por um Ser com uma única consciência, tanto faz que seja historiador ou geógrafo.

Referências Bibliográficas:

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THIESSE, Anne-Marie (2000), «As Histórias Nacionais» in A Criação das Identidades Nacionais, capitulo 6, editora Temas e Debates, Lisboa, pp. 133-156.

NOTAS:

[1] Considerava outras duas mestras na génese da teoria da história: uma história totalidade e uma história com a responsabilidade social.
[2] Consultada em http://www.bellamyjc.org/fr/rabelais.html, acedida em 16MAI10.